Por Roberto Amaral
Há um Estado a quem cumpre fazer e outro Estado a quem cumpre impedir que o Estado fazedor faça algo
O Estado brasileiro de hoje beira a anarquia institucional, enquanto, do ponto de vista administrativo, está condenado à ineficiência. Aqui, mais do que em qualquer outra parte, assiste-se ao desmoronamento do sistema de três poderes "iguais e independentes". O Judiciário desrespeita a União e o Poder Legislativo renuncia ao seu dever de legislar, afogado por um Executivo legislador. Meros órgãos auxiliares ou fiscais da administração, passam a agir como se poderes da República fossem - refiro-me especialmente ao Ministério Público e ao Tribunal de Contas -, e funcionários intermediários da estrutura burocrática se consideram autônomos e inatingíveis, juridicamente irresponsáveis. Refiro-me especificamente aos técnicos dos tribunais de contas e dos Ibamas. É a configuração do Estado anárquico, o que é, em si, uma contradição.
Ministros de tribunais superiores são boquirrotos e o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) deita falação sobre tudo o que lhe vem na telha e fala principalmente sobre temas que mais tarde lhe podem cair nas suas mãos de juiz. A isso se chama prejulgamento. E ninguém lhes diz que estão ferindo o decoro de função tão nobre: proselitismo e partidarismo são incompatíveis com a magistratura e a dignidade do cargo.
Na cola do STF, que legisla sobre questões penais, indígenas e outras, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), animado pela omissão suicida do Congresso, legisla sobre matéria eleitoral, minando a ordem jurídica com a insegurança: não "vale o escrito" (a lei de todos conhecida), mas o insondável que faz cócegas nas mentes de nossos ministros legisladores. A tal incongruência chamam de "neopositivismo".
O Tribunal de Contas da União (TCU) não apenas julga contas, mas pelo crivo de seus "técnicos" administra projetos, determina prioridades, interfere na administração ditando normas, ao arrepio dos interesses do Estado, que, assim, abdica, ou é forçado a abdicar de vontade estratégica.
A democracia representativa, atingida mortalmente pela falência da legitimidade eleitoral, se esfacela quando a soberania popular, fonte de todo o direito, é substituída pela toga ou pelo ditar da burocracia de segundo, terceiro e quarto escalões.
O pressuposto dessa burocracia (uma casta que se transforma em Poder e à sua vontade subordina os demais Poderes) é que o objeto da administração pública é irrelevante: não importa saber se o hospital a ser construído salvará vidas, se o atraso em sua construção determinará mais mortes; interessa ao burocrata saber se o tijolo comprado em Serra Talhada corresponde ao modelito com o qual trabalha em Brasília. E assim, dentro do Estado que deveria ser único, temos o Estado a quem cumpre fazer e o Estado a quem cumpre impedir que o Estado fazedor faça alguma coisa. É um conflito sem dialética que só leva ao impasse.
Digamos logo, antes que o juízo apressado nos seja levantado: não se pleiteia nem a ausência de fiscalização nem a impunidade, que, aliás, não é resolvida com paralisação ou adiamento de obras. Reclama-se a fiscalização e o máximo rigor na tomada de contas, mas afirmamos que a nenhum burocrata pode ser transferido o poder (exclusivo do Chefe de Estado) de ditar a oportunidade de obra estratégica.
Por isso, o Brasil não está usufruindo das vantagens decorrentes de seu desenvolvimento econômico e de sua posição particularmente favorável em face da crise do capitalismo mundial; simplesmente porque não pode, nosso Estado, ditar políticas estratégicas.
Apesar de não faltarem recurso nem vontade governamental, as obras do PAC não andam no ritmo necessário porque nem o Presidente pode dizer o que é estratégico em seu governo. Os ministérios, alcançados pelos cortes de "contingência" impostos pela dupla Planejamento/Fazenda, mesmo assim não conseguem realizar seu orçamento. Todos dependemos do arbítrio do burocrata.
O projeto do Centro Espacial de Alcântara transitou e dormitou entre as mesas dos tecnoburocratas do TCU até que um dia, passados mais de dois anos, seu Plenário decidiu aprová-lo com mais de mil emendas. Resultado, o projeto foi para a máquina de picotar papéis. Não sei quanto custou à União a perda do projeto, a demora de dois anos e a paralisação que já leva consigo cerca de quatro anos, e cobra mais outro tanto para voltar à ordem do dia. Sei que a Agência Espacial Brasileira foi aconselhada a contratar uma grande fundação para refazer o projeto, o que não sairá barato; sei que a Alcântara Cyclone Space ficou sem porto, essencial para suas operações.
Passados seis anos do desastre de 2003, quando o VLS explodiu no solo, só agora, é que são retomadas as obras da nova torre de lançamentos, embargada antes pela indústria das liminares e recursos ao TCU. Embora tenha ingressado na corrida espacial em 1961, o Brasil, hoje, depois de três tentativas frustradas em mais de 30 anos, não tem base de lançamento, torre, nem foguete lançador. Quem responde por isso?
A única coisa que possuímos é um bem do acaso, a boa localização geográfica do município de Alcântara, de frente para o mar e próximo da linha do Equador. Mesmo essa vantagem está ameaçada, pois o Incra considerou praticamente toda a península como área quilombola.
O futuro sítio da Alcântara Ciclone Space, que recebeu do presidente da República a missão de lançar o primeiro foguete Cyclone-4, fruto da cooperação Brasil-Ucrânia, ainda aguarda a regularização jurídica da área que lhe foi cedida no CLA (sob jurisdição da Aeronáutica) e a Licença Prévia que lhe deve o Ibama (esperada para este mês). Só então poderá se cogitar da licitação para as obras civis sem as quais não pode haver qualquer sorte de lançamento.
As obras de infraestrutura, responsabilidade brasileira, ainda não puderam ser iniciadas porque a Agência Espacial Brasileira não recebe os recursos de que necessita. E o porto de cargas não foi construído, nem se sabe quando o será porque a burocracia, em 2007, se esqueceu da dotação orçamentária necessária.
O projeto do submarino de propulsão atômica está atrasado cerca de 35 anos, e as obras de Angra III paralisadas há 23 anos. E ninguém sabe porque o Brasil está perdendo terreno em áreas estratégicas. Enquanto isso, na Esplanada, seus viventes dormem o sono tranquilo dos justos.
Roberto Amaral é membro titular do Instituto dos Advogados Brasileiros, ex-Ministro da Ciência e Tecnologia (2003/2004) e diretor-geral brasileiro da Alcântara Cyclone Space (ACS). Artigo publicado originalmente na página de Opinião (A-10) do jornal Valor Econômico de 8, 9 e 10 de janeiro de 2010.
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