*Nildo Lima Santos
Transferido para o Forte de Copacabana (3º GACos), fui recebido diretamente pelo seu Comandante com a patente de Coronel, o qual, surpreendentemente, pessoalmente, me recepcionou e, me conduziu para o interior da corporação providenciando o meu encaminhamento, fazendo o mesmo, boas referências de mim para um outro oficial que o acompanhava. Disse ele: - Eu quero o Cabo Nildo trabalhando na Fiscalização Administrativa (S/3). Tenho boas referências dele, de sua competência e, de sua inteligência! Ditas estas palavras, o Coronel me desejou boas vindas e, me pediu colaboração para alguns trabalhos que seriam confiados a mim, dentre eles a elaboração do Boletim Administrativo da Unidade.
Foi uma recepção respeitosa e pouco esperada por mim! Afinal de contas, a minha transferência tinha sido feita como forma de castigo! E, eu não conseguia entender tal castigo! Mas, uma coisa era certa: o Coronel Comandante do Forte de Copacabana sabia alguma coisa a meu respeito e, que não era nada que me colocasse de forma negativa perante aquele comando! Muito pelo contrário: era algo muito positivo!
O peso da confiança e da responsabilidade me fez um militar muito melhor! Tanto no aspecto disciplinar quanto com relação ao desempenho de minhas tarefas que tinham ficado mais complexas. A complexidade das atribuições se relacionava à participação no processo de gestão pública, já que a fiscalização administrativa era a responsável pela parte de execução financeira (tesouraria) e orçamentária da corporação, pelo controle patrimonial – tombamento e alienações – (que na organização militar se chama carga), pelo controle de suprimento (víveres e forragens) e, pelos processos de compras (contratos e licitações). São estas as atribuições idênticas às atribuições para qualquer ente público, federal, estadual ou municipal. Apenas com poucas, mas, largas diferenças. Uma das diferenças é a de que, o processo de compras no Exército é feito no estrito cumprimento do rigor da lei. Isto é, o fluxo processual é executado em todos os seus passos e se completa, dando pouca margem para corrupções.
A segunda diferença está relacionada à necessidade do registro de grande parte das decisões administrativas e financeiras, através de instrumentos de controle, dentre eles o Boletim Administrativo, o Boletim Interno e o Boletim Reservado, além dos processos de nomeação dos membros das várias Comissões de Licitações, de Sindicâncias e, de Exames e Avaliações.
A terceira diferença está relacionada à disciplina. Uma vez, detectado desvio de conduta de qualquer dos membros da Comissão ou do responsável pelo dinheiro ou patrimônio da instituição, de pronto, após o direito da ampla defesa perante Comissão de Sindicância ou de Inquérito, pune-se com rigor o responsável. – Pessoalmente, testemunhei a prisão e detenção na corporação, de militares com alta patente. Diga-se de passagem: “poucos, mas, teve até mesmo um General”. Não importa a patente! O que importa é que aquele que comete, mesmo que sejam, pequenos desvios de conduta com o dinheiro e a coisa pública, é exemplarmente punido. O que não ocorre na administração pública civil, onde nos parece que, quanto mais esperto para driblar os controles e roubar o dinheiro público, mais merece crédito pelos governantes e gestores públicos. Que a propósito, para se achar honestos dentre eles, só procurando através de potente lupa. – É neste meio que sou obrigado a conviver, sempre tentando a mudança de comportamentos e, sempre me revoltando a cada instante! Na verdade, os podres se protegem e, como são muitos e espalhados por todos os Poderes da República, a sociedade paga preços absurdos. É o preço da falsa democracia e o preço do atrofiamento do desenvolvimento da sociedade brasileira.
Certo dia, o Coronel Comandante do Forte de Copacabana que tinha assumido no lugar do Coronel que comandou o Forte em período anterior, o qual foi promovido a General, me convocou, através do Major Chefe da Secretaria Administrativa para que eu fizesse um trabalho de grande responsabilidade e, que era condicionante a sua promoção a General. O trabalho consistia em tentar descobrir o paradeiro de duas peças de canhão antiaério, dois geradores e energia e dois projetores que sabiam não mais existirem no Forte de Copacabana há anos, mas que ainda constavam dos registros de carga (patrimoniais) feitos em livro carga. A minha indicação, disse o Major, foi em função da confiança que tinham em mim, já que eu teria que ter conhecimento de informações reservadas e, em função de ter dado solução para o controle de víveres e forragens e de ter dado solução para a correção dos lançamentos de controle de munições, cujos níveis de registro não batiam com os registros de lançamentos.
A falha vinha de ano para ano, pelo simples fato de que, um comandante que saía sempre confiava no outro, já que, era praticamente impossível ocorrer situações tão graves e de desvio de qualquer item de valor do erário público sem os devidos registros. Ainda mais, em se tratando de equipamentos tão bem controlados! Deve ser considerado ainda, para que a falha passasse de ano para ano, o fato de que as inspeções (auditorias) que sempre eram feitas em cada comando, não tinham detectado tal problema. Mas tão somente foram detectadas no Comando do referido Coronel que, em plena coroação de sua carreira poderia pagar caro com a perda de sua promoção por ter confiado nos seus antecessores e, por não ter detectado simples erro de registro – já que dificilmente equipamentos de tão grande porte e tão bem controlados não iriam desaparecer assim à toa.
Parti então, para a tarefa de busca de pistas para o desaparecimento de tais peças de canhões, já que, para mim, era certo de que o erro era tão somente de anotações, já que, o pressuposto era o de que a cada comando e, a cada dirigente militar as responsabilidades sobre as ocorrências jamais faltariam. Ainda mais quando se tratava de itens de grande relevância e de grande controle. Em quaisquer situações que fossem esta certeza eu já as tinha! Em razão de ter mapeado todo o sistema de controle apenas pelos instrumentos que eu trabalhava. Pedi então, ao Coronel a autorização para verificar todos os boletins reservados e ele, prontamente, me deu tal autorização. – O que foi motivo de muitas indagações por alguns Sargentos e Oficiais que não entendiam o que eu estava fazendo. E, por quê eu, já que era apenas um Cabo?! Perguntavam incrédulos.
Passei então, a analisar os livros cargas, que continham os registros e movimentações dos itens da carga – carga que também é conhecida como patrimônio e nas empresas privadas como ativo imobilizado –. Primeiro verifiquei a existência dos lançamentos do último livro carga e constatei a existência das peças de canhão, dos geradores e dos projetores e, da data da inclusão de cada item na carga do Forte de Copacabana. Comparei com as anotações de carga no Boletim Reservado e lá estavam os registros de tais armamentos. Portanto, eu já tinha a certeza de que tais equipamentos, de fato entraram no Forte de Copacabana. Passei deste primeiro registro, feito bem antes da segunda guerra – me chamando a atenção pelo fato de que os registros eram feitos com caligrafia muito bonita e, à caneta tipo pena a tinteiro, que poderia ser até mesmo pena de ave – e, fui para os registros seguintes nos anos posteriores e, assim eu procedia a cada ano: verificava a existência dos equipamentos no livro referente ao ano e checava com os Registros nos Boletins Reservados. Até que em determinado ano, 1945 ou 1946, encontrei no Boletim Reservado os registros de uma Comissão Reservada de Sindicância que tinha decidido pela baixa de tais equipamentos em razão de terem sido gravemente avariados na praça de guerra na Itália e, que lá ficaram como sucata. Comparei, então, os registros do Boletim Reservado com os registros do livro carga daquele ano e percebi que o responsável pela transcrição do livro não promoveu o competente registro no campo destinado ao registro das baixas. Destarte, tendo tal registro, sido repetido até o dia em que se constatou a falta de tais equipamentos. Fiz o relatório e o apresentei ao Coronel Comandante do Forte de Copacabana, através do Major, o qual me agradeceu muito e, lamentou não ter mais o poder que tinham, anteriormente, os comandantes de quartéis, para promover soldado a Cabo e Cabo a Sargento. Caso tivesse este poder, com certeza, disse ele, me promoveria para Sargento.
Este episódio me fez entender de que os registros na administração pública são de fundamental importância para a garantia de direitos. Inclusive dos direitos que tem a população de conhecer a sua própria história. Fez-me constatar ainda, de que, com o advento da revolução de 1964 foi implantado no País maior rigidez nos controles da coisa pública. Inclusive, eliminando a impessoalidade na promoção de subordinados. Foi implantado de vez o critério da seleção pelo mérito do conhecimento. Onde tive a oportunidade de ser aprovado nos exames de seleção para o Curso de Formação de Sargento do Exército (CFS). Encerrando a minha carreira militar por aí, já que eu pretendia alçar outros vôos na oportunidade que a vida civil me oferecia naquele momento.
Passei a entender ainda, de que, nas organizações, principalmente, nas organizações públicas, sejam elas civis ou militares, o arquivo público é de fundamental importância para a instituição e para a sociedade, pois são nos arquivos que se têm os registros de dados fundamentais para a preservação de direitos trabalhistas, previdenciários, imobiliários, de herança, fazendários e outros. Têm-se o registro de dados e fatos históricos necessários para as referências em seus múltiplos aspectos, inclusive, as estatísticas geográficas. Arquivos estes, que até agora somente encontrei como bom exemplo no Exército Brasileiro e, como péssimo exemplo nas administrações públicas civis. Principalmente nos municípios brasileiros, onde pouca atenção é dada a tal sistema de suma importância para o planejamento e, consequentemente para o desenvolvimento do País.
Eu já diagnostiquei em vários dos municípios onde tive a oportunidade de trabalhar, de que, o arquivo público quando não existe, não é levado a sério. E, um deles é o Município de Juazeiro da Bahia, onde encontrei como procedimento normal, amontoar papéis públicos jogados em um quarto, de qualquer jeito, para periodicamente serem queimados no lixão. No meio destes papeis, tinham fichas de registros de servidores; cópias de alvarás de construção; cópias de documentos de pagamentos de dívidas públicas; folhas de pagamento; cópias de licenças de parcelamento do solo urbano; etc. Destarte, o prejuízo que foi causado à sociedade tem foi imenso ao longo dos anos, principalmente, agora, quando o servidor busca junto à previdência a comprovação do seu tempo de serviço. Não é diferente a preocupação com o patrimônio público, onde o controle é precário e, na maioria dos municípios, este tipo de controle não existe. O que propicia constantes saques à coisa pública. – Veículos, máquinas e equipamentos públicos são transformados em bens particulares por alienações fraudulentas. Computadores e equipamentos periféricos são transferidos para residências de servidores e, ex-servidores públicos –. Na alternância de poder pelos grupos políticos dominantes, o vácuo de comando existente, na passagem do governo, agrava-se ainda mais a situação e, importantíssimas informações necessárias à continuidade dos serviços públicos desaparecem de um dia para o outro em algum equipamento de armazenamento de dados magnéticos e no sumiço de pastas com documentos em sistema de arquivamento físico. Portanto, a responsabilidade com o que é público é inexistente e, os Tribunais de Contas, ao invés de contribuírem para que se evite tais tipos de coisas, também, por serem tribunais políticos – na prática, por sua formação na escolha dos seus conselheiros – contribuem para reforçar ainda mais a corrupção que assola a sociedade brasileira e, com isto adiando a cada dia a possibilidade da verdadeira mudança do comportamento do Estado Brasileiro insustentável, em suas viciadas instituições públicas civis.
As licitações e contratações são feitas, na maioria dos Municípios Brasileiros, apenas pró-forma e, com a cumplicidade de instituições que têm a função de fiscalizar. Alguns tribunais de contas dos Municípios de Estados do Nordeste são péssimos exemplos, por indicarem, pessoas e empresas, do relacionamento pessoal de servidores do tribunal ou de algum conselheiro, para, supostamente, resolverem os problemas que os Prefeitos, Presidentes de Câmaras e Gestores de Empresas Públicas têm na dificuldade de formalizar os processos de compras e, de fechar a prestação de suas contas. São os verdadeiros químicos, que não têm a preocupação com o que é público e com a sociedade. Se, necessário, são capazes de providenciarem até notas fiscais frias para justificarem determinadas despesas, quanto mais, a fabricação de atas de reuniões e julgamentos de licitações, para reuniões e competições que jamais existiram! Esta é a realidade que eu conheço de perto e, que, graças a Deus, não existe nas corporações militares do Exército Brasileiro e, por longos anos não residiram nas empresas públicas federais durante o governo militar. Talvez seja por isto, o grande tamanho do meu inconformismo. Eu tive a oportunidade de conhecer o lado bom da administração pública e, certamente, não me acostumei com o seu lado podre que, infelizmente existe na, maioria dos entes da república. Não tenho medo nem vergonha de fazer esta afirmação! A imprensa está aí e, em todos os dias, publica e comprova esta verdade! A verdade que eu conheço bem de perto e que, inclusive tenho sido vítima por não aceitá-la em hipótese alguma! Vítima, nos julgamentos sobre reclamações de meus direitos junto à esfera judicial! Vítima nas perseguições políticas e, vítima no exercício de minha profissão de consultor! Vítima pelas minhas convicções.
Estas anomalias que existem nos Municípios e em algumas outras instituições dos Estados Federados espalhados ao longo do território brasileiro, existiam também, em algumas instituições e órgãos do Governo Federal. Dentre eles, o Departamento de Correios e Telégrafos para onde eu fui trabalhar, quando de sua transição para empresa pública, onde tive a oportunidade de ser submetido a exames de avaliação para o exercício de cargo público através do regime da CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas). A transformação em empresa pública, assim como tantos outros departamentos da administração direta do governo federal, era uma necessidade para que fosse dada qualidade aos serviços públicos. E, este papel o governo militar cumpriu muito bem! Lembro-me que, a empresa ainda quando, na sua fase, de implantação amargava por ter herdado um quadro de servidores viciados e despreparados e, um rol de procedimentos inadequados e pouco recomendáveis para a administração pública. O patrimônio não tinha controle! O arquivo da empresa não funcionava! O seu sistema de protocolo era rudimentar! Os processos de compras e suprimento eram viciados e com fortes indícios de corrupções endêmicas que comprometiam e corroíam o orçamento da entidade! Portanto, era este o quadro e, que por duros esforços foram modificados. Graças a excelência de conhecimento sobre administração pública que tinham a maioria dos militares que assumiram funções de grande relevância na empresa pública e, graças ao bom comportamento e espírito público destes abnegados homens. Isto há de ser reconhecido e, justiça seja feita! Eu só lamento no governo militar a oportunidade que perderam de mudar definitivamente o Estado Brasileiro por não ter irradiado para os Estados Federados e Municípios o bom comportamento organizacional que conseguiram implantar por certa época nos órgãos do Governo Federal. Em suma, por não ter conseguido implantar um padrão único e necessário de comportamento para todas as unidades da federação brasileira. Considerando as relações políticas e sistêmicas que existem verdadeiramente entre os entes federados. Há de se reconhecer, por fim, de que, uma engrenagem ruim que permanece em uma máquina, certamente, comprometerá todas as outras engrenagens e como conseqüência a máquina passará a funcionar mal, ou deixará de funcionar. E, as engrenagens ruins na administração pública são os Estados Federados e em maior proporção, os Municípios Brasileiros.
*Nildo Lima Santos. Bel. em Ciências Administrativas. Pós-Graduado em Políticas Públicas. Consultor em Administração Pública.
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