*Nildo Lima Santos
Tendo sido dispensado pela Aeronáutica, na condição de voluntário, o meu alistamento foi transferido para o Exército e, me apresentei na 1ª Circunscrição do Serviço Militar, em São Cristóvão no Rio de Janeiro. Lá observei que o órgão tinha um bom grau de organização, já que distribuía os locais de apresentação dos alistados por áreas geográficas em função dos seus locais de residência, conforme os documentos que atestassem estes locais. Portanto, por residir temporariamente em Copacabana, foi definida a minha apresentação no 8º GACosM (oitavo Grupo de Artilharia de Costa Motorizado) que ficava na Gávea. Sendo o único local daquela região onde os alistados deveriam se apresentar.
No dia marcado, para lá me dirigi. Já temeroso e assustado pela recepção que tive na Aeronáutica em Brasília. Observei que o contingente de jovens alistados era imensamente maior. Mas, nem por isto, deixaram de merecer a atenção respeitosa dos militares responsáveis por aquela junta militar. Lá fizemos todos os exames médicos e passamos por avaliações rigorosas através de testes escritos com questões de matemática e de português, que se misturavam com questões de raciocínios – que, muito tempo depois daquele momento, me deu a certeza de que eram avaliações psicológicas. Preenchemos extensos questionários com informações pessoais, inclusive relacionadas a conhecimentos e cursos profissionalizantes. A coisa era bem mais formal e a minha sensação era a de concorrência para a oportunidade de servir. Era de fato uma disputa. Mais era uma disputa justa onde cada um tinha a oportunidade de se apresentar e de mostrar um pouco do que sabiam. Se eu fosse eliminado, ficaria menos chateado, pois a disputa através da competição é que estava sendo prevalecido. Talvez, a disputa pelo conhecimento para as áreas planejadas nas funções necessárias para manutenção de uma corporação militar (tarefas do rancho, tarefas burocráticas, tarefas de apoio logístico, tarefas de oficina, tarefas de serviços de limpeza, etc.). Aquelas básicas e primárias que a instituição achava necessário. E, pela primeira vez enxerguei a instituição, diferentemente da minha primeira experiência na Aeronáutica, onde apenas enxergamos as figuras de dois militares arrogantes e mal educados.
Pela primeira vez eu estava enxergando o Estado organizado. Não tinha noção das teorias do Estado, naquela época, mas, esta percepção, começou a surgir a partir daquele momento e, que me serviu no processo de aprendizagem e, ainda me serve muito bem como referenciais de organização. A rigor, senti, desde os primeiros momentos, a confiança que me faltara. As esperanças retornaram e, a certeza da grandeza que era aquela instituição. Fiquei deveras orgulhoso e, não me lamentei por ter perdido a oportunidade de ter sido escolhido pela Aeronáutica. Deus, com certeza, me ajudou me conduzindo para a melhor instituição a qual mais tarde, com os conhecimentos acadêmicos, eu iria de fato reconhecer que era e é a maior instituição do País, apesar de falhas que são inevitáveis e que se assentam na arquitetura política do próprio Estado Brasileiro.
Lá não conheci a discriminação institucionalizada. Lá todos aqueles jovens e demais militares eram brasileiros e defensores da pátria. Não se enxergava o preconceito de irmãos contra irmãos. Fossem negros, brancos descendentes de alemães, índios, asiáticos, judeus, muçulmanos, espíritas e protestantes. Mais cultos ou menos cultos. Eram irmãos de farda! Eram todos militares! Era então a democracia desejada com a hierarquia, o respeito ao próximo e à família. Não tinha e nem tive do que me queixar e, aqueles que fugiam a regra da fraternidade, na arrogância, na truculência, na desumanidade, certamente, não conseguiram ir muito longe. Ali era o universo do companheirismo, da responsabilidade com o coletivo e com a instituição, com a pátria brasileira, com a ordem, a disciplina e com a coisa pública (res-pública). É o que sonhamos para as administrações públicas civis. Era a verdadeira administração pública onde o prêmio é uma conseqüência do mérito. Diferentemente das instituições públicas civis, onde o que prevalece é o oportunismo, a malandragem política, a sagacidade para o engodo, o patrimonialismo, o corporativismo e, o individualismo.
Após ter passado por todos os testes, finalmente, fui um dos escolhidos para servir à maior instituição militar do País e, por residir em Copacabana fui incorporado no Quartel General da Artilharia de Costa, o qual ficava ao lado do Forte de Copacabana. Tinha lógica me encaminharem para aquele quartel, já que, eu era exímio datilografo, residia em Copacabana e, as maiores atividades do Quartel General eram as burocráticas. Mesmo assim, passada a fase inicial de conscrito, para a fase de soldado, cujo período de formação é bastante intenso, fui submetido a mais um outro exame que era para a efetiva comprovação do que realmente sabíamos fazer, de acordo com as nossas informações anotadas no questionário na fase inicial de seleção no 3º GACosM. Tive que fazer teste prático de habilidade com máquina de datilografia – lembro-me que, no dia do teste os outros soldados colegas de incorporação gozavam da minha cara por ser eu de origem de cidade do interior do Nordeste, com características físicas peculiares a alguns nordestinos e, em razão disto achavam que minhas aptidões serviam apenas para ser soldado do rancho (auxiliar de cozinheiro para lavar chão, panelas e pratos) ou para faxineiro. Pensando eles, por serem alguns filhos de militares – tinha até um que era filho de Almirante (Comandante Ferraz) meu amigo soldado Samuel Ferraz e que não fez parte daqueles que riam de mim – e, outros que estavam fazendo o pré-vestibular, e, por serem da Zona Sul do Rio de Janeiro, tinham quase certeza que sobrariam para os nordestinos apenas as tarefas da cozinha e de limpeza das privadas. Era o preconceito social, mas, não era o preconceito da instituição! Era o preconceito de jovens que ainda não conheciam a vida, o que é natural. E, tenho certeza de que o Exercito lhes deu muitas lições e hoje são outros homens!
O descrédito de minha capacidade vinha apenas dos jovens colegas. Não vinha daqueles militares que tinham a obrigação de atender a todos e, de submeter todos aos testes para as profissões que tinham sido indicadas pelos mesmos, nos questionários preenchidos e ali confirmadas um a um perante os superiores responsáveis pelo comando e que serviriam para as posições nas QM’s (Qualificações Militares).
O resultado do meu exame foi tão bom que fui indicado para trabalhar na Ajudância Geral, na Seção responsável pela confecção e reprodução do Boletim Interno. Condição esta que um ano após me levou a ocupar atribuições, já na graduação de Cabo, de datilografo e responsável pela reprodução em mimeógrafo daquele importantíssimo instrumento de gestão implantado nas corporações militares. Para se ter a idéia, da importância do meu trabalho basta se ter o conhecimento de que os quartéis subordinados ao Quartel General da Artilharia de Costa, dependiam para o fechamento dos Boletins de suas Unidades, do boletim geral expedido pelo Quartel General e, a tropa somente era dispensada do expediente diário, após a leitura deste em cada um destes quartéis.
Era a oportunidade ímpar na vida de um jovem – afinal eu tinha tão somente dezoito anos – e, já tinha os primeiros contactos com estruturas organizadas onde se observavam claramente os princípios do planejamento, organização, direção, coordenação, controle e, comando. Era a oportunidade com o contacto com um instrumento impar de gestão que fazia as instituições militares funcionar sem tropeços. Infelizmente, a gestão necessária, que não existe na maioria das administrações públicas civis do Brasil – as maiores responsáveis pelos caminhos e descaminhos do desenvolvimento da sociedade brasileira.
No Boletim Interno, composto de quatro partes, das quais, lembro-me mais da Primeira Parte, que tratava da administração de pessoal e, que dentre outras matérias tinha a escala de serviços; da Terceira Parte que tratava da publicação de matérias administrativas, dentre elas a grade de ração que era um mapa com os resultados de cálculos quantitativos dos militares que estariam no quartel para se alimentarem no dia seguinte – era, portanto, o planejamento e o controle –; e, da Quarta Parte que se tratava da Justiça e da Disciplina. Era esta última parte a mais temida pelos praças. Principalmente, aqueles mais indisciplinados. Era onde se cantava a prisão e a detenção. Enfim, a punição; mas, também, onde se publicavam os elogios e a soltura dos presos e detidos – estes como matérias relacionadas à justiça.
Via-se então, através deste instrumento, o funcionamento diário da organização, naquilo que lhe era mais necessário e transparente. Era o Boletim Interno o maior dos instrumentos democráticos da instituição, sem sombras de dúvidas e, que não requeriam grande contingente de pessoas para operá-los. Era o compromisso de cada um que fazia a organização funcionar. O compromisso com a responsabilidade! O compromisso com o público! O compromisso com a instituição! Quem dera se na administração pública civil fosse este o comportamento! Certamente, seriamos uma das Nações mais desenvolvidas do mundo. Pois riquezas não nos faltam! O que nos faltam são os bons comportamentos. O bom comportamento dos administradores para com o que é público. O bom comportamento dos políticos para com os seus eleitores e com a sociedade em geral.
*Nildo Lima Santos. Bel. em Ciências Administrativas. Pós-Graduado em Políticas Públicas e Gestão de Serviços Sociais. Consultor em Administração Pública.
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