sexta-feira, 8 de agosto de 2008

TERCEIRO CAPÍTULO: Vivendo a Burocracia do Exército e Aprendendo Administração Pública.



*Nildo Lima Santos

Constatei, há muitos anos atrás, que viver na organização militar me proporcionou riquíssimos conhecimentos que até hoje me servem e, que sempre me ajudaram nas indicações de soluções como Consultor em Administração Pública. Esta é a mais pura verdade que jamais negarei, por mais que tenha aprendido ao longo da minha vida profissional com muitos anos de estudos e de experiências vividas em incontáveis instituições públicas. No exército constatei a rigidez no cumprimento das formalidades das normas de administração pública que, são as mesmas, até hoje, também, para a administração pública civil, sofrendo apenas poucas alterações com o advento da Constituição Federal e, com a revisão da Lei de Licitações e Contratos. Os princípios da impessoalidade e da legalidade na aplicação do concurso público, nas corporações militares, eram e ainda são os mesmos exigidos para as administrações públicas civis (administrações diretas e indiretas da União, dos Estados e dos Municípios). A única diferença constatada estava e, ainda está relacionada à nomeação dos Cargos em Comissão; os cargos “ad nutum”. Isto é, os de livre nomeação e exoneração pelo dirigente maior. Os que são preenchidos por indicação e nomeação pelo dirigente maior da instituição, no caso da União pelo Presidente da República, no Poder Executivo e, nos demais Poderes da União (Legislativo e Judiciário), pelos seus respectivos mandatários. E assim, se processando da mesma forma e, em suas respectivas escalas de Poder, nos Estados, no Distrito Federal e nos Municípios. Diferença esta que é de fundamental importância para entendermos o imenso abismo que existe entre o desenvolvimento das administrações públicas militares e o das administrações públicas civis, já que, as leis básicas sobre administração pública têm alcance por igualdade de extensão e de procedimentos em todos estes entes mencionados – normas gerais de direito financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços (Lei 4.320/64); lei de licitações e contratos (Lei 8.666/93), que hoje substitui o antigo Decreto-Lei 200/67; o Decreto-Lei 201/67, que trata da responsabilidade e das penas a serem aplicadas aos gestores públicos; e, a atual Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei 101/00).

Esta sutil diferença, que é a diferença no processo de escolha dos dirigentes públicos, é a grande diferença que existe da administração pública militar para a administração pública civil. A administração pública militar é exercida pelo mérito e pela competência. Os cargos de direção não são cargos políticos, mas, sim de especialistas que se preparam por longas jornadas de estudos, de trabalhos realizados e de avaliações comportamentais para o exercício efetivo dos mesmos. Existe o profissionalismo monitorado a cada instante. – Existem alguns deslizes comportamentais, é bem verdade, mas são tão poucos e, as punições são tão severas e certas que jamais comprometerão a instituição e jamais alterarão os seus rumos e, sua credibilidade tão necessária para a manutenção da soberania do Estado. – Diferentemente da administração pública civil, onde o processo de escolha permite que semi-analfabetos, quase analfabetos, malfeitores e, até mesmo criminosos, já declarados em instâncias judiciais, ocupem os mais diversos cargos de direção da República, ferindo de morte, a racionalidade, a razoabilidade e, a legalidade, já que, para ocupação de tais cargos, a exigência é a do conhecimento, no mínimo das funções que irão exercer nas organizações públicas do Estado Brasileiro. Este é o pressuposto básico e, que é pouco compreendido pela sociedade e que por conveniência os grupos políticos dominantes – em nome da pseuda democracia – fazem questão de desconhecê-lo em prol de seus únicos objetivos que, não são os relacionados ao desenvolvimento da sociedade brasileira como um todo. Salvando-se raríssimas e honradas exceções – raríssimas mesmo!!! – que atravessam anos a fio com desesperança, desconfiança e, perseguições lhes batendo à porta a todo instante.

As afirmações e análises, aqui registradas, serão ilustradas – na tentativa do reforço do raciocínio lógico sobre o problema – com a exposição de algumas regras adotadas nas instituições militares e civis e, com alguns episódios vivenciados e percebidos por mim, em tais instituições.

Voltando aos artigos anteriores, lembramos ao leitor sobre o processo de escolha dos candidatos para o ingresso na instituição militar como simples recruta. E, de que tal processo se dá através de extensos exames e, que mesmo tendo passado pela bateria inicial de exames há a necessidade de se promover uma outra bateria de testes de aptidão, para realmente, saber qual o recruta que está preparado para o exercício de algumas das mais variadas funções, que ainda não se relacionam com o comando. Pois, para qualquer comando – o menor que seja! – a regra é o exame de seleção para os que manifestem interesse em seguir a carreira militar, através de sua inscrição – aberta para todos que atendam os pré-requisitos –, para exame de seleção para o curso de preparação para a graduação exigida, criada e aberta vaga na forma da legislação pertinente. Somente com a realização do curso, após o concurso e, com a efetiva promoção, dentro da vaga existente e avaliação disciplinar é, que definitivamente, estará o militar credenciado para a ocupação das funções de comando ou direção. Há de se ficar bastante claro, que o comando está pulverizado em várias das atividades, momentos e níveis da administração pública militar. É desta mesma forma, também, que o comando está pulverizado nas administrações públicas civis. A grande diferença é que nas corporações militares, exige-se o preparo – a rigor não se pode errar e, não se pode correr o risco de graves erros –. Já, na administração pública civil, tais avaliações não são feitas. E, portanto, correm-se graves riscos, a todo instante, do desvio dos rumos definidos para a estrutura do Estado Brasileiro que, geram de roldão, os maiores problemas que as instituições públicas militares vivem e, que estão intrinsicamente relacionados ao desenvolvimento de suas ações cruciais para a consecução e manutenção das metas estabelecidas através da filosofia militar que é a de sustentação da figura do próprio Estado Brasileiro reconhecido em sua soberania. – O que é pouco compreendido pela sociedade e pelos políticos que, na sua grande maioria, não conseguem sequer entender os seus próprios papéis e missões. Então, como entender o papel das Forças Armadas e, a filosofia do Estado se para tanto, há a necessidade do preparo e estes não os têm?!...

Dentre os episódios que ilustram as minhas afirmações e análises escolhi alguns que passarei a narrá-los:

PRIMEIRO EPISÓDIO: A Aparência e a Formação que Induziram à Desconfiança no Processo de Escolha e a Responsabilidade na Verificação

Após meu engajamento como soldado, já no primeiro ano apareceu a oportunidade para o exame de seleção para a graduação de Cabo. Prontamente fiz a minha inscrição juntamente com mais vinte companheiros para concorrermos, primeiramente a duas vagas e, que mais tarde, após os resultados foram ampliadas para três vagas apenas. Todos os inscritos tinham o segundo grau completo e, somente eu tinha cursado apenas até a quarta série ginasial e, que hoje se equivale à oitava série. Feitas as provas, após quarenta e oito horas saíram os resultados. Dezoito candidatos obtiveram notas abaixo de cinco e apenas três obtiveram notas favoráveis, dentre eles eu. As notas foram as seguintes: 3º colocado, nota 5,0; o 2º colocado que era enteado de um militar com a patente de General, obteve a nota 6,0 e eu obtive a nota 8,25 ficando em 1º lugar. Daí gerou o problema! Como era possível eu ter tirado nota tão alta se, dentre aqueles, que teoricamente tinham mais conhecimento do que eu, somente dois lograram êxito e com notas bem inferiores às que eu obtive? “Alguma coisa deveria ter ocorrido”. Afirmavam. Daí surgiu a necessidade de apuração e até se falava em sindicância para saber quem vazou a prova para mim, já que não poderia vazar o resultado em razão da prova ter sido subjetiva. Me levaram para um lado e me interrogaram, me levaram para outro e me interrogaram. E, eu sempre repetia a mesma coisa: - A prova estava fácil!!! – Soldado Nildo você está brincando com a gente!!! Exclamavam alguns superiores. Daí surgiu a idéia brilhante do Major Magalhães, na época Chefe da Ajudancia Geral, a quem eu era subordinado diretamente nas funções burocráticas. Disse ele: - Eu confio muito no soldado! E, para se tirar as dúvidas, sem tanta burocracia e desconfianças; bastará apenas que se aplique um outro teste para o soldado, com questões diferentes, mas, relacionadas aos mesmos conteúdos programáticos das matérias. – E, assim foi feito! Acharam que seria necessário aplicar apenas as provas de matemática.

Aplicada a prova e corrigida no mesmo dia, para surpresa geral a minha nota de matemática foi 9,25 superior à nota obtida no exame realizado dias antes. Foi uma surpresa geral e comentários para todo o Quartel. E, o que muitos deduziam é que eu tinha mentido com relação à minha escolaridade. Mas, eu não menti! Tinha um Tenente, baiano, que dizia: - O soldado é baiano! Vocês já viram baiano burro?! Neste episódio existia apenas uma grande diferença que era a responsabilidade que tive com o aprendizado e, aproveitei o máximo que me foi ministrado pelos professores lá na minha cidade do interior e, eu era autodidata e não sabia! Só vindo a saber após vários outros episódios passados em minha vida, mas, isto algum dia eu os registrarei. A verdade é que eu li muito as revistas Seleções que meu pai recebia. Em minha casa tinha enciclopédias Delta Larousse e Delta Júnior e eu ficava viajando em suas páginas. Tinha os clássicos da literatura universal e eu tentava pensar como Sócrates e Aristóteles. Sobre a ética no homem – principalmente. Aprendia a resolver exercícios da matemática básica para ensinar aos que me procuravam. E, o que o cérebro armazena, dificilmente esquece, a não ser que alguma doença lhe venha a causar seqüelas! Esta é a realidade!

Neste episódio está bem claro de que, as malandragens não são aceitas pelo exército e, de que, os critérios de justiça são muito fortes e, inexiste o clientelismo e o personalismo. Não fosse assim, eu não concorreria em igualdade de condições com o enteado do General e com os demais candidatos que tinham aparentemente mais potencialidades do que eu.

SEGUNDO EPISÓDIO: A Tirania, Falta de Educação, o Desrespeito com os Subordinados e, a Arrogância são Fatores Limitativos da Carreira Militar.

Já promovido a Cabo tirava serviços no comando da guarda do Quartel General e, no comando da mesma tinha como atribuições as de receber o alojamento, o material carga, pátio e instalações limpos, que eram transferidos pela guarda do dia anterior, além das normais de comando dos soldados da guarda na vigilância e reverências aos oficiais superiores, seguindo toda uma formalidade de sinais e formas. Destarte, tinha que inspecionar as áreas adjacentes ao Corpo da Guarda e, de conferir a roupa de cama, mobiliário e munição. A conferência era através de um Livro de Ocorrências denominado de “Livro Parte”. Neste livro eram registradas todas as ocorrências em quatro partes, nas mesmas disposições do Boletim Interno. Livro este que era diàriamente analisado pelo Comandante do Estado Maior, que tinha a patente de Coronel, o qual era sabido que amargava o final de carreira com frustrações por não ter conseguido chegar ao posto de General da ativa. Cujo nome prefiro não dizer. O gabinete deste Coronel ficava próximo ao Corpo da Guarda e de lá ele via toda movimentação da guarda.

Um certo dia, quando eu estava no Comando da Guarda e, após a cerimônia ao comandante maior que era o General, me adentrei ao recinto do Corpo da Guarda para conferir a carga através dos registros no referido livro parte, deixando os soldados sentados no banco da entrada do quartel, o que era normal, após orientações com uma breve preleção - eles já sabiam como deveriam se comportar – e, fui surpreendido com os gritos do tal Coronel:
– Cabo da Guarda!!! Cabo da Guarda!!! Cabo da Guarda!!! Bradava o Coronel.
Saí em disparada e me pus à sua frente, perfilado e fazendo continência, na grande varanda que antecedia a entrada de seu Gabinete e do Gabinete do General.
– Pois não Coronel! Cabo Nildo, comandante da guarda se apresentando!
– Cabo a sua guarda está alterada! Bradava o estressado Coronel que contava com mais de quarenta anos de serviço e que tinha participado da segunda guerra mundial.
– Por quê Coronel? Perguntei.
– Ainda pergunta por que Cabo!!! Se enquadra!!! Você é um relapso!!!
– Por quê Coronel? Perguntava eu insistentemente com raiva, mas, com voz firme e sem medo ¬– a minha voz é bem grave e, por estas qualidades, muitas vezes fui chamado para fazer apresentações e algumas locuções, apesar de um pouco de gagueira, mas, incrivelmente, em minhas apresentações a gagueira não aparece –.
– Fale baixo comigo!!! Se irritou o Coronel gritando comigo. A estas alturas, de relance, eu avistava muitos militares graduados observando o episódio, tinha soldados, Cabos, Sargentos, Tenentes, o Capitão da Bateria e até mesmo o Major que, com aquela gritaria foi ver o que estava acontecendo.
– Os soldados da sua guarda estavam sem capacete Cabo! Exclamou o Coronel.
– Coronel, o que eu posso fazer agora é dar parte dos mesmos, pois eu os adverti que qualquer alteração seria motivo de parte! (parte é o registro de ocorrência de indisciplina ou qualquer outra alteração, no jargão militar). Respondi eu com firmeza.
– O que você tanto fazia dentro do Corpo da Guarda Cabo? Perguntou o Coronel em voz alta.
– Eu estava conferindo o material carga Coronel! Respondi, já também, irritado.
– Fale fino comigo Cabo, que pra mim você não é homem!
– O que Coronel? Repita Coronel!
– Afine a voz que você não é homem Cabo!!! Repetiu o Coronel.
– Nem do meu pai eu aceito isto, quanto mais de você seu... – Já armando o braço para descer no Coronel, aí ouvi algumas vozes salvadoras:
- Não faça isto Cabo! Se acalme! Está ficando doido!
E, me controlei. Mas, este episódio serviu para que eu fosse imediatamente transferido para a tropa no Forte de Copacabana e se encerrou por aí mesmo não tendo eu sofrido nenhuma outra punição. Nem detenção e nem cadeia. Acredito que tenha sido em função do meu comportamento que sempre foi bom, inclusive com muitos elogios. E, em função do episódio ter sido presenciado por vários outros militares, sendo que muitos deles não gostavam de tal Coronel, pela sua arrogância e truculência. Mas, ele era a segunda autoridade maior do Quartel General e, acima dele somente existia o General. Mas, nem por isto eu tive uma punição severa.

Uns dias depois, por informações de alguns sargentos e oficiais que, o comportamento do Coronel para comigo tinha sido pelo simples fato de que eu, em guardas anteriores tinha lavrado ocorrências no Livro Parte que não tinham sido bem recebidas pelo Coronel. Lá no livro parte eu reclamei da munição que estava com o lote já vencido, inclusive, com os projéteis folgados, o que colocava toda a guarda em risco, já que, na época os rumores eram de que terroristas estavam tomando guardas de assalto para roubarem as suas armas e, para promoverem baixa moral de acordo com o planejado para os seus objetivos. E, como defender o quartel e as nossas vidas se as armas eram apenas para ostentações e pareciam armas de brinquedo! Tinha eu anotado no Livro Parte. Reclamei ainda: da podridão dos colchões e da roupa de cama. Os colchões estavam fétidos e, a roupa de cama somente era trocada uma vez por semana. – Alguém deu a ordem para isto, pois, tinham o desprezo pelos soldados que estavam ali para servir à pátria. Muitos forçados pela obrigação legal, que não era o meu caso! Eu estava ali por opção – por sinal, uma boa opção e que me ajudou muito –, eu estava por profissão, já que fiz exames de seleção para me iniciar na carreira militar.

Na verdade eu cumpri o meu papel e fui honesto com a instituição, com os meus pares e com a minha consciência. Mas, na vida, isto nem sempre é compreendido! Na verdade eu ataquei no fundo o comportamento de pessoas que tinham errado e não assumiram os seus erros e, que se encastelavam por trás da autoridade conquistada, mas, que lhe era vulnerável dentro do ponto de vista comportamental, principalmente do comportamento de uma organização militar que tem como lema sempre pregar e, defender a ordem e o progresso.

O que o episódio demonstra é o critério de justiça que impera no Exército e, confirma que, os truculentos e arrogantes não tem vez na instituição. Se o Coronel foi tão truculento comigo, deve ter sido também, ao longo de sua vida. E, o seu castigo foi não ter sido ele reconhecido pelos próprios pares para que galgasse o posto de General. Faltava ao Coronel a competência interpessoal que é necessária em todas as funções de comando. Houve, de certa forma, o reconhecimento do mérito do militar que sempre agiu correto e, portanto, não sofreu nenhuma pena, já que a transferência é uma coisa normal e foi a melhor solução a ser dada para o problema sem grandes traumas. Tomaram de fato uma boa decisão! O que normalmente não ocorre nas administrações públicas civis, onde nada é apurado e, quem manda é aquele que tem o Poder político, então, as truculências, as arrogâncias, as injustiças e, as perseguições imperam. Direitos são tirados dos servidores sem justificativas. Servidores são demitidos arbitrariamente. Pessoas e famílias inteiras são perseguidas. Não existe o bom julgamento. Pois, os julgadores são comprados a peso de ouro e, portanto, não existe a justiça em favor daquele que é oprimido pelo “poder político dominante”.

No próximo capítulo – o quarto –, falarei das primeiras experiências e conhecimentos dos processos de controle e gestão na administração pública.

Nildo Lima Santos. Bel. em Ciências Administrativas. Pós-Graduado em Políticas Públicas e Gestão de Serviços Sociais. Consultor em Administração Pública.

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