segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

LIMITES DA COMPETÊNCIA REGULAMENTAR DO PODER EXECUTIVO. ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA E AUTONOMIA DAS ENTIDADES DESCENTRALIZADAS

Antônio José Calhau de Resende (*)

O problema que nos depara consiste em verificar a possibilidade jurídica de o legislador ordinário atribuir ao Chefe do Poder Executivo a prerrogativa de modificar, por meio de regulamento, competências de órgãos e entidades autárquicas e fundacionais. O objeto desse estudo está intimamente relacionado com o princípio da legalidade na gestão da coisa pública, explicitamente previsto no “caput” do art. 37 da Constituição da República, e o alcance do poder regulamentar do Governador do Estado.

É sabido que o ordenamento constitucional define as matérias que devem ser objeto de lei formal e que a atuação dos órgãos e entidades administrativas vincula-se ao império da lei e dos demais princípios retores da Administração Pública. Além do respeito aos parâmetros do sistema normativo, os agentes públicos devem guardar fidelidade aos princípios da moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência. Em Minas Gerais, o “caput” do art. 13 da Constituição, desde sua redação original, consagrou expressamente o princípio da razoabilidade. Este exige bom senso, moderação e relação de adequação entre os meios empregados e a finalidade a ser alcançada pelos administradores públicos, no exercício de suas atividades.

É sabido, ainda, que o Estado passa por mudanças porque a sociedade também está em processo de mutação e exige novas formas de atuação do poder público, sobretudo para garantir a satisfação do interesse da coletividade, que o Estado tem o dever de proteger. Nesse contexto de transformações, cogita-se muito de fórmulas alternativas de ação que privilegiem a consensualidade nas relações entre os órgãos e as entidades públicas, e entre estas e a sociedade civil.

Com a promulgação da Emenda Constitucional nº 32, de 2001, houve uma ampliação do poder regulamentar do Presidente da República, fato que tem levado alguns autores a admitirem a implantação do regulamento autônomo no Direito brasileiro. Tal inovação constitucional merece maiores esclarecimentos, pois, não obstante a tendência incontestável de se aumentar o poder normativo do Executivo, que se expressa basicamente mediante decretos e regulamentos, a lei desfruta de considerável primazia sobre os demais atos normativos.

O exame da matéria requer uma explicação mais pormenorizada sobre a organização da Administração Pública, especialmente sobre as características principais das entidades da Administração indireta e os limites do poder regulamentar do Executivo.

Centralização e descentralização

O Estado pode prestar serviços por intermédio dos órgãos componentes de sua própria estrutura administrativa, ou seja, executar diretamente atividades de interesse público, ou transferir a execução do serviço para pessoas jurídicas distintas.

Quando o poder público exerce diretamente os serviços que lhe são atribuídos pelo sistema normativo, sem transferi-los a outras entidades personificadas, está-se diante da chamada Administração direta ou centralizada. Fenômeno inverso ocorre quando o Estado decide delegar a outros entes a realização de determinado serviço público que se enquadra no âmbito de sua competência originária, mas sempre sob sua fiscalização.

Com o advento do Decreto-Lei nº 200, de 1967, o qual dispõe sobre a organização administrativa federal, a Administração Pública passou a ser dividida em Administração direta e indireta, de modo que a primeira compreende os serviços integrados na estrutura da Presidência da República e dos Ministérios, e a segunda engloba as entidades dotadas de personalidade jurídica própria, alcançando as autarquias, as fundações públicas, as sociedades de economia mista e as empresas públicas, em conformidade com a prescrição do art. 4º do citado diploma legal, com as modificações ulteriores.

Um dos parâmetros norteadores da reforma administrativa federal foi o princípio da descentralização, que pressupõe, pelo menos, duas pessoas jurídicas: a titular originária do serviço ou atividade - no caso, o Estado - e a entidade por este criada para o exercício dessa atividade, sempre sob o controle do poder público. A descentralização administrativa, portanto, implica a retirada do serviço do centro e a sua transferência para setores periféricos, descongestionando a Administração. Ocorre, então, o fenômeno de deslocamento de competências da Administração direta para a Administração indireta, por meio de lei, visto que a instituição de entidades descentralizadas está condicionada a procedimento legislativo prévio, por força do citado Decreto-Lei nº 200 e da Constituição da República superveniente. É oportuno salientar que as diretrizes consagradas pelo legislador federal no tocante à organização da Administração Pública foram seguidas pelos Estados-membros e Municípios.

Deve-se ter a cautela devida para não confundir a descentralização com a desconcentração. Esta consiste em uma distribuição de atribuições no interior de uma mesma pessoa jurídica e não acarreta a criação de um novo ente. A título de exemplificação, as Secretarias de Estado são formas de desconcentração de serviços com base na matéria, subordinando-se ao Governador do Estado. Como esses órgãos não possuem personalidade jurídica, a sua atuação é imputável diretamente à pessoa jurídica de que fazem parte - no caso, o próprio Estado.

A Administração direta compreende, pois, um conjunto de órgãos sem personalidade jurídica, ao passo que a Administração indireta abrange o complexo de entidades dotadas de personificação, algumas de direito público, outras de direito privado, todas dependendo de lei para serem criadas ou extintas. A Constituição do Estado de 1989 elencou, explicitamente, as entidades da Administração indireta no § 1º do art. 14: autarquia, de serviço ou territorial; sociedade de economia mista; empresa pública, fundação pública; e demais entidades de direito privado, sob controle direto ou indireto do Estado.

O § 4º do mesmo artigo, seguindo as linhas básicas da Constituição Federal, exige lei específica para a criação de autarquia e fundação pública e autorização legislativa para a instituição ou extinção de sociedade de economia mista e empresa pública. Isso porque as entidades autárquicas e fundacionais possuem personalidade de direito público, razão pela qual desfrutam de prerrogativas próprias de poder público. As empresas estatais, por terem personalidade de direito privado, só adquirem existência jurídica a partir da inscrição de seus atos constitutivos no órgão competente, na forma da lei civil ou comercial, conforme o caso.

Características das entidades da Administração indireta

Ainda com fulcro nas linhas gerais do Decreto-Lei nº 200, não obstante algumas imprecisões conceituais, as entidades da Administração indireta apresentam traços comuns, tais como a necessidade de lei para serem criadas, a personalidade jurídica, a autonomia administrativa e financeira, a existência de patrimônio próprio, a especificação dos fins e a vinculação a órgãos da Administração direta, para o controle de finalidade.

Segundo a doutrina dominante e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, as fundações instituídas ou mantidas pelo Estado com personalidade pública são consideradas espécies do gênero autarquia, de maneira que os elementos característicos das autarquias são os mesmos das fundações públicas.
Nesse ponto, cumpre lembrar que o § 5º do art. 14 da Carta mineira determina expressamente que “ao Estado somente é permitido instituir ou manter fundação com a natureza de pessoa jurídica de direito público”. Enquanto prevalecer essa dicção normativa, o Estado não poderá criar fundação de direito privado, nos moldes da legislação civil.

Neste estudo, interessa-nos principalmente expor a noção básica das entidades autárquicas, com fundamento no sistema normativo e na doutrina dominante.

O legislador federal define autarquia como “o serviço autônomo, criado por lei, com personalidade jurídica, patrimônio e receita próprios, para executar atividades típicas da Administração Pública, que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada”. Apesar da omissão conceitual quanto à natureza pública dessa entidade descentralizada, que é um defeito grave dessa definição normativa, pode-se constatar que a idéia de auto-administração está devidamente caracterizada no conceito, quando faz referência à gestão administrativa e financeira desse serviço autônomo.

Seguindo as diretrizes do Decreto-Lei nº 200, porém sem incorrer no mesmo equívoco, o art. 13, I, da Lei Delegada mineira nº 5, de 1985, define autarquia como “a entidade criada por lei, com personalidade jurídica de direito público, patrimônio e receita próprios e capacidade de auto-administração sob controle estatal, para executar atividades da Administração Estadual que, para melhor funcionamento, requeiram gestão administrativa e financeira descentralizadas;”.

Veja-se que a definição formulada pelo legislador estadual contém os atributos mais importantes das entidades autárquicas, entre os quais se destacam a criação por lei, a personalidade de direito público e a capacidade de autoadministração.

O saudoso mestre Hely Lopes Meirelles ensina que “autarquias são entes administrativos autônomos, criados por lei específica, com personalidade jurídica de Direito Público interno, patrimônio próprio e atribuições estatais específicas” (“Direito Administrativo Brasileiro”, 23ª ed., São Paulo: Malheiros, 1998, p. 297).

Em outra passagem de sua obra clássica, o citado jurista afirma:

“A doutrina moderna é concorde no assinalar as características das entidades autárquicas, ou seja, a sua criação por lei específica com personalidade de Direito Público, patrimônio próprio, capacidade de auto-administração sob controle estatal e desempenho de atribuições públicas típicas. Sem a conjunção desses elementos não há autarquia. Pode haver ente paraestatal, com maior ou menor delegação do Estado, para a realização de obras, atividades ou serviços de interesse coletivo. Não, porém, autarquia” (op. cit. p. 298).

A publicista Maria Sylvia Zanella Di Pietro, por sua vez, define autarquia como “pessoa jurídica de direito público, criada por lei, com capacidade de autoadministração, para o desempenho de serviço público descentralizado, mediante controle administrativo exercido nos limites da lei” (“Direito Administrativo”, 17ª ed., São Paulo: Atlas, 2004, p. 368-369).

Portanto, a idéia de auto-administração, que diz respeito à autonomia administrativa e financeira do ente para a execução de suas atividades, é inseparável do conceito de autarquia. Essa capacidade de gerir os interesses que lhe foram confiados nos termos da lei instituidora significa que a entidade age por direito próprio, embora seja uma criatura do Estado, e goza de uma série de privilégios semelhantes ao do ente político criador. A título de ilustração, mencionem-se o poder de editar atos administrativos e de celebrar contratos administrativos, sob as normas do Direito Público; o exercício do poder de polícia, quando previsto em lei; e os prazos processuais mais dilatados para contestar e recorrer, entre outras prerrogativas inerentes às pessoas dessa natureza. Os atos praticados pela entidade não são imputáveis ao Estado, pois ela possui personalidade jurídica própria e assume direitos e obrigações. Sendo entidade autônoma, a capacidade de que desfruta para atingir sua finalidade legal pressupõe a utilização dos meios necessários para tanto. É exatamente em razão desse poder de auto-administração que a autarquia não mantém relação de hierarquia ou subordinação com o Estado. Sujeita-se apenas ao controle de finalidade, também conhecido como tutela administrativa, mediante o qual o Estado somente poderá interferir na atuação da entidade nas hipóteses previstas em lei. É, na verdade, um controle que se restringe a verificar se o objetivo institucional da autarquia está sendo alcançado, se a sua atuação encontra-se em sintonia com as diretrizes políticas do Governo e se os serviços públicos estão sendo realizados de forma eficiente.

Seria estranho admitir que esse tipo de entidade goze de autonomia administrativa para perseguir determinado fim público, mas não disponha dos meios ou instrumentos indispensáveis ao alcance de tal desiderato. Segundo tradicional regra de hermenêutica jurídica, “quem pode o mais pode o menos”, salvo situações excepcionais que justifiquem tratamento distinto. É, portanto, inconcebível atribuir a outro órgão ou entidade da Administração Pública a realização de atividades que se enquadram no campo da autonomia de cada autarquia. Assim, a realização de licitações, a celebração de contratos e o procedimento de ingresso de servidores (concurso público) constituem manifestação inequívoca do poder de auto-administração das entidades autárquicas. Conseqüentemente, não teria fundamento jurídico transferir tal prerrogativa a outros órgãos ou entes administrativos, sob pena de se eliminar o que existe de mais importante na concepção das autarquias, ou seja, a autonomia que lhes é inerente no exercício de suas atividades. O problema se agrava quando a modificação de suas atribuições ocorre por meio de regulamento do Executivo, o qual é ato normativo secundário, sem caráter inovador e hierarquicamente subordinado à lei.

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Mandado de Segurança nº 21.579-DF, impetrado por servidor autárquico que fora demitido por decreto presidencial, após a instauração do processo disciplinar pelo Ministério controlador, decidiu pela anulação do procedimento administrativo e, conseqüentemente, do ato demissório. O fundamento dessa decisão reside na competência da própria entidade autárquica para a realização do processo disciplinar do servidor, que é expressão de sua autonomia administrativa em face da União. O referido Tribunal foi taxativo ao determinar a “incompetência do Ministério a que vinculada a autarquia para conduzir o procedimento disciplinar, frente a autonomia que ostenta a autarquia, por sê-lo, para tanto”. Esse julgamento foi publicado no “Diário da Justiça” de 30/4/93, e atuou como relator o Ministro Francisco Rezek.

Sendo os entes autárquicos criados por lei, sua finalidade institucional não pode ser modificada por ato de seus dirigentes, mas, tão-somente, por ato do legislador, que poderá extingui-los ou transformá-los, segundo aspectos de conveniência política. É o que analisaremos no próximo item.

Criação, transformação e extinção de órgãos e entidades

É interessante observar que alguns órgãos da Administração direta foram erigidos em serviço autônomo descentralizado, especialmente sob a modalidade de autarquia. No âmbito federal, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE -, criado pela Lei nº 4.127, de 1962, era um órgão colegiado integrante da estrutura administrativa do Ministério da Justiça. Com a edição da Lei nº 8.884, de 1994, o referido órgão foi transformado em autarquia, passando a integrar a Administração indireta do Executivo, vinculado ao Ministério da Justiça, para fins de controle de finalidade, preservando-se sua denominação e competência originais.

Em Minas Gerais, na década de 90, pelo menos dois órgãos da Administração direta foram transformados em entidades autárquicas vinculadas à antiga Secretaria de Estado da Casa Civil e Comunicação Social, a saber, o Departamento Estadual de Telecomunicações - DETEL-MG - e a Imprensa Oficial do Estado, respectivamente, por meio das Leis nºs 10.827, de 1992, e 11.050, de 1993.

Fenômeno inverso também pode ocorrer, ou seja, o Estado, se entender conveniente, tem a prerrogativa de extinguir determinada autarquia - fórmula de descentralização administrativa - e assumir diretamente a execução do serviço. Trata-se de uma questão relacionada com as opções discricionárias do poder público. Se o serviço ou a atividade é exercida de forma desconcentrada, por meio dos órgãos que integram a estrutura administrativa do Estado, existe normalmente a relação de subordinação, que é inerente ao fenômeno da desconcentração. Isso propicia um controle amplo e irrestrito do Estado sobre a atuação de seus órgãos. Vale dizer, a autoridade superior poderá interferir amplamente na condução das atividades dos agentes e órgãos subalternos, dispondo do poder de revogar os atos inconvenientes e de anular os atos ilegais, o que é uma decorrência natural do princípio da hierarquia.

Situação diferente ocorre quando o Estado opta pelo serviço descentralizado e, para assumir a sua execução, cria determinada autarquia, nos termos da lei instituidora. O ente autônomo criado, por ter personalidade pública distinta da pessoa jurídico-política Estado, a este não se subordina, mas mantém uma relação de mera vinculação com determinado órgão da Administração direta, conforme a natureza da matéria a que esteja afeto, o que propiciará o controle finalístico da autarquia. Como já foi mencionado alhures, esse controle é limitado ao que a lei estabelece, pois a autonomia da entidade autárquica deve ser respeitada.

Vê-se, pois, que o Estado dispõe de discricionariedade política quanto à forma de execução do serviço. Poderá optar pelo serviço centralizado ou descentralizado, de modo a melhor atender às conveniências administrativas e aos interesses da coletividade. Todavia, se se pretende manter as instituições autárquicas, as prerrogativas intrínsecas a tais entidades devem ser rigorosamente observadas, sob pena de se deturpar a noção de autarquia, que supõe capacidade de auto-administração. Ademais, ressalte-se que, na qualidade de pessoa de direito público, esse tipo de entidade dispõe da titularidade do serviço público que exerce, o que não ocorre com as pessoas de direito privado, que recebem delegação do Estado apenas para a execução da atividade. Isso porque as pessoas de direito privado não podem ser titulares de interesses públicos.

Saliente-se, mais uma vez, que a criação de autarquia por lei específica é uma exigência do art. 37, XIX, da Constituição da República. Comando análogo consta no art. 14, § 4º, I, da Carta mineira, que também exige lei específica para a sua extinção. Ora, se a existência jurídica de tal entidade resulta diretamente da lei, que lhe atribui autonomia administrativa e financeira, eventual restrição dessa autonomia somente poderia ocorrer mediante lei específica incidente sobre cada entidade autárquica, com fundamento no princípio do paralelismo das formas. A capacidade de auto-administração consagrada em lei não pode ser atenuada por ato administrativo. Ainda que essa limitação de autonomia seja obra do legislador, tal restrição deve estar amparada pelo princípio da razoabilidade, que requer bom senso, moderação e coerência, visto que autarquia sem poder de gestão ou com capacidade de ação reduzida simplesmente anula a descentralização. Se o legislador retirasse parcela considerável da autonomia dos entes autárquicos, que são os mais tradicionais da Administração indireta, e a transferisse para outro órgão ou entidade administrativa, as autarquias seriam transformadas em figuras meramente decorativas. Assim, a personalidade de direito público, que lhes é peculiar, converter-se-ia em expressão vazia de conteúdo e o fenômeno da descentralização de serviços deveria ser totalmente repensado.

No que diz respeito à possibilidade de regulamento ou decreto do Executivo modificar competências definidas em lei, o assunto merece exame específico a respeito do alcance e dos limites do poder regulamentar no direito brasileiro, ainda que de forma sucinta, o que faremos no próximo tópico.

O poder regulamentar do Executivo

No Brasil, cabe tradicionalmente aos Chefes do Poder Executivo a atribuição constitucional de expedir decretos e regulamentos para a fiel execução das leis, conforme estabelece o art. 84, IV, da Constituição da República. No âmbito estadual, a competência do Governador do Estado para a regulamentação das leis está prevista no art. 90, VII, da Carta mineira.

Decretos e regulamentos são atos administrativos de caráter normativo expedidos pelo Executivo para a adequada aplicação das leis. Nem todas as normas aprovadas pelo Legislativo são auto-executórias, razão pela qual torna-se necessária a edição de regulamentos que pormenorizem a lei e estabeleçam as providências administrativas visando à sua aplicação uniforme. Por se tratar de atos hierarquicamente inferiores à lei, os regulamentos jamais podem ampliar ou restringir o conteúdo e o alcance das disposições legislativas, sob pena de afrontar a ordem constitucional vigente. Assim, direitos e obrigações constantes na lei não podem ser suprimidos mediante regulamento, de maneira que a validade deste está condicionada à observância dos parâmetros consagrados no ato legislativo superior. Apenas a lei inova originariamente a ordem jurídica, razão pela qual é fonte primária do Direito, ao passo que o regulamento, por não ter a característica da novidade, é fonte secundária.

Além disso, a lei é expressão do poder político do Estado, enquanto o regulamento é manifestação de poder administrativo, ou seja, é um poder instrumental assegurado constitucionalmente a algumas autoridades para proporcionar a aplicação uniforme da lei. Como ato político por excelência, a lei é editada no exercício de acentuada liberdade política, o que não ocorre com a edição de regulamento, pois este deve guardar submissão integral à lei. O exercício do poder regulamentar supõe, portanto, a existência de lei administrativa anterior. As competências definidas em lei formal, que passa pelo crivo do Poder Legislativo e posterior sanção do Chefe do Executivo, não podem ser modificadas por regulamento do Governador do Estado. Se se admitir o contrário, lei e regulamento estariam no mesmo plano hierárquico, o que não é verdade, em face do ordenamento constitucional vigente. Em razão do princípio da legalidade, previsto principalmente no art. 5º, II, e no art. 37, “caput”, da Constituição Federal, existe uma nítida primazia da lei sobre o regulamento. O papel deste no direito brasileiro está claramente delineado no mencionado inciso IV do art. 84 da Lei Maior, ou seja, explicitar a lei para a sua fiel aplicação. É o chamado regulamento executivo, que determina comandos complementares da lei para a sua correta e adequada execução. Tais preceitos constitucionais evidenciam a total submissão do regulamento aos comandos do legislador, sendo insustentável admitir que atos administrativos normativos do Executivo possam contradizer a lei ou extrapolar seu conteúdo.

Sobre este tipo de regulamento, ensina o saudoso jurista Geraldo Ataliba:

“Consiste o chamado poder regulamentar na faculdade que ao Presidente da República - ou Chefe do Executivo, em geral, Governador e Prefeito – a Constituição confere para dispor sobre medidas necessárias ao fiel cumprimento da vontade legal, dando providências que estabeleçam condições para tanto. Sua função é facilitar a execução da lei, especificá-la de modo praticável e, sobretudo, acomodar o aparelho administrativo, para bem observá-la” (Decreto regulamentar no sistema brasileiro. RDA, Rio de Janeiro, v. 97, jul./set. 1969, p. 21-33).

Celso Antônio Bandeira de Melo, ao abordar o tema à luz do ordenamento constitucional, ensina:

“É que os dispositivos constitucionais caracterizadores do princípio da legalidade no Brasil impõem ao regulamento o caráter que se lhe assinalou, qual seja, o de ato estritamente subordinado, isto é, meramente subalterno e, ademais, dependente de lei. Logo, entre nós, só podem existir regulamentos conhecidos no Direito alienígena como ‘regulamentos executivos’. Daí que, em nosso sistema, de direito, a função do regulamento é muito modesta” (“Curso de Direito Administrativo”. 16ª ed., São Paulo: Malheiros, 2003, p. 311).

Com base nos ensinamentos dos eminentes doutrinadores, é fácil extrair a idéia da acessoriedade do regulamento em relação à lei, o que torna patente a dependência e subordinação daquele perante o ato legislativo propriamente dito.

São muitas as relações entre a lei e o regulamento, porém o Executivo deve estar atento às diretrizes da Lei Maior ao editar atos regulamentares necessários à execução das leis. Não se admite qualquer espécie de contradição entre lei e regulamento, sob pena de nulidade deste. Pelo contrário, a relação entre ambos deve ser de estrita adequação e compatibilidade, o que exclui a possibilidade de decreto regulamentar modificar, ampliar ou restringir atribuições fixadas pelo legislador.

Alguns países, como a França, consagram na Constituição a figura do regulamento autônomo, a par do regulamento executivo. O campo de atribuições do primeiro é de natureza residual ou remanescente, pois as matérias não reservadas ao Parlamento podem ser disciplinadas em regulamento autônomo.

Este pode inovar originariamente a ordem jurídica, diferentemente do regulamento executivo, que supõe a existência de lei anterior. Assim, o art. 34 da vigente Constituição Francesa de 1958 enumera as matérias que só podem ser reguladas em lei formal, ao passo que o art. 37 atribui ao Executivo o poder de baixar regulamentos para tratar de assuntos não inseridos explicitamente no domínio do legislador. Ora, esse tipo de regulamento não pressupõe lei anterior, pois seu objetivo não é complementar disposições legislativas preexistentes, mas disciplinar de forma autônoma assuntos que se encartam em sua competência residual.

Ainda com fulcro no ordenamento constitucional francês, são matérias que se enquadram no domínio da lei a nacionalidade, o estado e capacidade das pessoas; a criação de crimes e a cominação das penas; as garantias fundamentais asseguradas aos funcionários civis e militares do Estado; a nacionalização de empresas; e a criação de novas categorias de estabelecimentos públicos, que são entidades análogas às autarquias do direito brasileiro, entre outras especificadas no texto.

Existe, no Brasil, tendência a ampliar o poder regulamentar do Executivo, o que se verificou com a promulgação da Emenda à Constituição nº 32, de 2001, que alterou a redação do inciso VI do art. 84 da Lei Fundamental, entre outras disposições. Nos termos da redação atual do preceptivo, compete privativamente ao Presidente da República dispor, mediante decreto, sobre a organização e o funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos. Ademais, compete-lhe extinguir funções ou cargos públicos, quando vagos. Ora, essa alteração constitucional não introduziu, efetivamente, o poder regulamentar autônomo no Brasil, a exemplo do que ocorreu com a Constituição Francesa de 1958. A citada emenda constitucional deve ser interpretada com cautela, de modo a não jogar por terra o princípio da legalidade, que é da essência do Estado de Direito. Houve, sem dúvida, ampliação do poder regulamentar do Executivo, mas não a ponto de o Presidente da República ou o Governador do Estado poder modificar, mediante decreto, competências estabelecidas pelo legislador. Repita-se, uma vez mais, que atribuições definidas em lei não podem ser alteradas pelo Executivo, no exercício da função administrativa. Ao expedir decreto dispondo sobre a organização e o funcionamento da Administração Pública, em hipótese alguma o titular dessa competência poderá prescrever disposições incompatíveis com as leis aprovadas pelo Legislativo. É da essência do Estado de Direito a supremacia da lei em face do decreto ou do regulamento.


Conclusão

Pelo que foi exposto ao longo deste estudo técnico, entendemos que os atributos tradicionais das entidades da Administração indireta, principalmente das autarquias e fundações públicas, não podem ser ignorados. A autonomia financeira e administrativa de tais entes, que se refere à capacidade de autoadministração no exercício de suas atividades, deve ser respeitada pelo Estado.

Essa autonomia consagrada na lei pode ser ampliada ou restringida pelo legislador, com fundamento no princípio do paralelismo das formas, mas não por meio de regulamento. A eventual limitação do poder de ação das autarquias, que só pode resultar de ação legislativa, deve ser feita de maneira criteriosa e com boa dose de razoabilidade, de modo a não comprometer a execução dos serviços que lhes são inerentes nem subverter a natureza jurídica dessas pessoas públicas. Manter as entidades da Administração indireta sem autonomia ou com capacidade de ação reduzida a quase nada simplesmente anula a descentralização, visto que a noção de autarquia implica amplos poderes de gestão, embora com total submissão ao império da lei e do Direito.

Todavia, é oportuno ressaltar que as inovações introduzidas no ordenamento jurídico vigente, ancoradas no festejado princípio da eficiência, têm dado ênfase à chamada administração consensual, em substituição à clássica administração burocrática. Aquela pressupõe acordo das partes interessadas para o alcance de metas, enquanto esta escuda-se na via impositiva, unilateral e formalista. No âmbito estadual, o fundamento de tal fórmula de atuação reside nos §§ 10 e 11 do art. 14 da Carta Mineira, introduzidos pela Emenda à Constituição nº 49, de 2001, os quais tratam da ampliação da autonomia gerencial, orçamentária e financeira dos órgãos e das entidades descentralizadas, mediante instrumento próprio, na forma da lei. O assunto em questão está devidamente disciplinado na Lei nº 14.694, de 2003, que prevê o instituto denominado Acordo de Resultados como instrumento hábil à ampliação dessa autonomia.

A par desse problema relativo ao tratamento das entidades autárquicas, há outro, referente à interpretação da mencionada Emenda Constitucional nº 32. Esta não introduziu o regulamento autônomo no Direito brasileiro, nos moldes do que ocorreu no sistema constitucional francês. Ela apenas ampliou o poder de ação do Chefe do Executivo para o funcionamento da Administração Pública. Decretos e regulamentos continuam sendo atos normativos subalternos e hierarquicamente inferiores à lei. Conseqüentemente, jamais poderão modificar competências estabelecidas antecipadamente pelo legislador. A Constituição da República não dá margem a tal interpretação, pois ainda prevalece, no Estado Democrático de Direito, a supremacia da lei sobre o regulamento.

(*) Consultor da Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais e Mestre em Direito Administrativo.

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Fonte: Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais. 

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