RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO
EMENTA: TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. PODER GERAL
DE CAUTELA. LEGITIMIDADE. DOUTRINA DOS PODERES IMPLÍCITOS. PRECEDENTE (STF).
CONSEQÜENTE POSSIBILIDADE DE O TRIBUNAL DE CONTAS EXPEDIR PROVIMENTOS
CAUTELARES, MESMO SEM AUDIÊNCIA DA PARTE CONTRÁRIA, DESDE QUE MEDIANTE DECISÃO
FUNDAMENTADA. DELIBERAÇÃO DO TCU, QUE, AO DEFERIR A MEDIDA CAUTELAR,
JUSTIFICOU, EXTENSAMENTE, A OUTORGA DESSE PROVIMENTO DE URGÊNCIA. PREOCUPAÇÃO
DA CORTE DE CONTAS EM ATENDER, COM TAL CONDUTA, A EXIGÊNCIA CONSTITUCIONAL
PERTINENTE À NECESSIDADE DE MOTIVAÇÃO DAS DECISÕES ESTATAIS. PROCEDIMENTO
ADMINISTRATIVO EM
CUJO ÂMBITO TERIAM SIDO OBSERVADAS AS GARANTIAS INERENTES À CLÁUSULA
CONSTITUCIONAL DO “DUE PROCESS OF LAW”. DELIBERAÇÃO FINAL DO TCU QUE SE LIMITOU
A DETERMINAR, AO DIRETOR-PRESIDENTE DA CODEBA (SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA), A
INVALIDAÇÃO DO PROCEDIMENTO LICITATÓRIO E DO CONTRATO CELEBRADO COM A EMPRESA A
QUEM SE ADJUDICOU O OBJETO DA LICITAÇÃO. INTELIGÊNCIA DA NORMA INSCRITA NO ART.
71, INCISO IX, DA CONSTITUIÇÃO. APARENTE OBSERVÂNCIA, PELO TRIBUNAL DE CONTAS
DA UNIÃO, NO CASO EM EXAME, DO PRECEDENTE QUE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL FIRMOU
A RESPEITO DO SENTIDO E DO ALCANCE DESSE PRECEITO CONSTITUCIONAL (MS 23.550/DF,
REL. P/ ACÓRDÃO O MIN. SEPÚLVEDA PERTENCE). INVIABILIDADE DA CONCESSÃO, NO
CASO, DA MEDIDA LIMINAR PRETENDIDA, EIS QUE NÃO ATENDIDOS, CUMULATIVAMENTE, OS
PRESSUPOSTOS LEGITIMADORES DE SEU DEFERIMENTO. MEDIDA CAUTELAR INDEFERIDA.
DECISÃO: Trata-se de
mandado de segurança, com pedido de medida cautelar, impetrado contra
deliberação, que, emanada do E. Tribunal de Contas da União (Processo
TC-008.538/2006-0), acha-se consubstanciada em acórdão assim ementado (fls.
35/36):
“SOLICITAÇÃO DO CONGRESSO
NACIONAL. REALIZAÇÃO DE FISCALIZAÇÃO EM CERTAME LICITATÓRIO.
AUSÊNCIA DE LICENCIAMENTO AMBIENTAL PRÉVIO À ABERTURA DO
CERTAME. EDITAL DE CONCORRÊNCIA COM CLÁUSULAS RESTRITIVAS AO CARÁTER
COMPETITIVO DA LICITAÇÃO. INFRINGÊNCIA A PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E LEGAIS
RELATIVOS A LICITAÇÕES E CONTRATOS. INOBSERVÂNCIA DAS NORMAS LEGAIS RELATIVAS A
PROCESSO DE OUTORGA DE CONCESSÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS. INADEQUABILIDADE DOS
ESTUDOS DE VIABILIDADE. FIXAÇÃO DE PRAZO PARA ANULAÇÃO DO CERTAME E DO
CONTRATO. MULTA.
2. O programa de arrendamento das áreas e instalações portuárias
deve ser elaborado atendendo às suas destinações específicas, de acordo com o
Plano de Desenvolvimento e Zoneamento do Porto que contém as áreas objeto de
arrendamento, nos termos do Decreto 4.391/02.
3. Os processos de arrendamento de áreas e instalações portuárias
cujos valores gerem receita mensal superior a R$ 50.000,00 sujeitam-se à fiscalização, prévia
ou concomitante, do Tribunal de Contas da União, nos moldes previstos na IN TCU
27/98, alterada pela IN TCU 40/02, ante o disposto no Decreto 4.391/02.
4. O processo licitatório e a celebração do contrato de
arrendamento de áreas e instalações portuárias depende de prévio licenciamento
do órgão ambiental competente, nos termos da Lei 8.630/93, da Resolução Antaq
55/02 e da Resolução Conama 237/1997.
A parte ora impetrante, que
é sociedade de economia mista, sustenta que essa deliberação, além de
transgredir certos diplomas normativos – Lei nº 8.630/93 (art. 4º, § 1º), Lei
nº 8.666/93 (art. 31, § 2º), Lei nº 9.784/99 (arts. 3º e 38) e Decreto nº
4.391/2002 (art. 2º, § 3º, I, e art. 7º, § 1º) -, também ofendeu o texto da
Constituição da República, notadamente os seus arts. 5º, incisos LIV e LV, e
71, § 1º, assinalando que o E. Tribunal de Contas da União teria atuado além
dos limites de sua competência institucional, apoiando-se, a autora do presente
“writ”, nas seguintes alegações (fls. 04 e 08):
“Exsurge nítido vício de competência da Autoridade Impetrada com
mácula no art. 71, § 1º, da Constituição Federal, como se procurará demonstrar.
......................................................
A Peticionária entende que não pode juridicamente transformar-se
em simples preposto do Tribunal de Contas da União, para, em seu nome, tornar
sem efeito contrato validamente celebrado.
É certo que, se a Postulante vier a invalidar o mencionado
contrato, na esteira do entendimento do Supremo Tribunal Federal, poderá tê-lo
feito por conta e responsabilidade própria, já que a manifestação envolveria
simples recomendação.
Ao atuar em nome próprio sujeita-se, inclusive à responsabilidade
civil e a perdas e danos que poderão ser demandados pelo contratado, pela via
judicial, sem que possa escudar-se na afirmativa de que teria praticado um ato
por recomendação de Autoridade Incompetente, já que ‘ninguém será obrigado a
fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei’ (‘art. 5°,
inciso II, CF’).
A Impetrante, a seu sentir, não encontra máculas que lhe levem a
fulminar o contrato e não pode acatar ordem de quem evidentemente não é
competente para tanto, porque usurparia atribuição do Congresso Nacional.
De todo modo, para que a Codeba, Autora desta
lide viesse a anular o referido ajuste deveria instaurar procedimento próprio
com as garantias inerentes à ampla defesa e ao contraditório, para afinal
proferir veredicto.” (grifei)
O E. Tribunal de Contas da
União, por sua vez, ao prestar as informações que lhe foram solicitadas,
produziu esclarecimentos que por ele foram assim resumidos (fls. 328):
“Mandado de segurança, com pedido de liminar, impetrado contra os
termos dos Acórdãos n. 1.379/2006 e 2.338/2006, proferidos pelo Plenário do
TCU, por meio dos quais foram tecidas determinações ao Diretor-Presidente da
Codeba para que adotasse as providências necessárias ao exato cumprimento da
lei, com vistas à suspensão/anulação da Concorrência n. 3/2004 e do Contrato n.
16/2006, firmado com a Empresa Bunge Alimentos S.A.
1. O recurso administrativo interposto contra o Acórdão n.
2.338/2006-TCU-Plenário foi recebido apenas no efeito devolutivo em relação às
determinações que confirmaram a medida cautelar, consoante dispõe o art. 520,
IV, do CPC, aplicado subsidiariamente nos processos do TCU.
2. Da observância pelo TCU ao precedente firmado pelo STF no MS
23.550/DF. O TCU não anulou qualquer ato ou contrato administrativo, apenas
determinou à autoridade administrativa a sua anulação, ressaltando, outrossim,
que o não-atendimento da referida determinação resultaria na imediata
comunicação ao Congresso Nacional, a quem compete adotar o ato de sustação.
3. O TCU tem legitimidade para expedição de medidas cautelares, a
fim de prevenir a ocorrência de lesão ao erário ou a direito alheio, bem como
garantir a efetividade de suas decisões, consoante entendimento firmado pelo
STF.
4. Em sendo o provimento cautelar medida de urgência, admite-se
sua concessão ‘inaudita altera parte’ sem que tal procedimento configure ofensa
às garantias do contraditório e ampla defesa, ainda mais quando se verifica
que, em verdade, o exercício dos referidos direitos, observado o devido
processo legal, será exercido em fase processual seguinte.
5. Qualquer vício alegado em relação ao Acórdão n.
1.379/2006-TCU-Plenário não merece ser conhecido, haja vista que já decaiu o
direito de a Impetrante impugná-lo pela via mandamental. O referido ‘decisum’
foi proferido em 09/08/2006, publicado do DOU em 11/08/2006 e comunicado ao
Diretor-Presidente da Codeba em 31/08/2006.
6. Da observância aos princípios do devido
processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Antes de o TCU proferir o
Acórdão n. 2.338/2006-Plenário, foi conferido aos interessados oportunidade de
defesa, os quais não lograram elidir as diversas irregularidades constatadas
pelo TCU.7. Não-cabimento da liminar, ante a ausência do ‘fumus boni juris’. No mérito, denegação da segurança, em face da legitimidade das decisões proferidas pelo TCU e pela inexistência do alegado direito líquido e certo.” (grifei)
Cabe analisar, preliminarmente, se se revela cabível, ou não, o presente mandado de segurança, considerada a afirmação - constante da própria petição inicial - de que a invalidação do contrato e do procedimento licitatório caracterizaria “simples recomendação” (fls. 08).
Reconheço que a deliberação do E. Tribunal de Contas da União, no
caso, analisada em seu conteúdo material, não veicula mera recomendação (como
sugere a ora impetrante), mas consubstancia, no ponto versado na presente
impetração mandamental, clara determinação (v. itens ns. 9.4 e 9.5 do Acórdão
2338/2006 – fls. 58/59) dirigida à própria Companhia das Docas do Estado da
Bahia – CODEBA.
A presente observação é feita em decorrência de pronunciamento da
ora impetrante, que, ao se referir à eventual invalidação do contrato celebrado
com a empresa vencedora da licitação, expressamente afirmou, em sua petição
inicial, que, “(...) se a Postulante vier a invalidar o mencionado contrato
(...), poderá tê-lo feito por conta e responsabilidade própria, já que a
manifestação envolveria simples recomendação” (fls. 08 – grifei).
Se se verificasse, na
espécie, “simples recomendação” (fls. 08), como sugere a ora impetrante,
tornar-se-ia inadmissível a presente ação de mandado de segurança, pois, como
se sabe, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entende insuscetível de
conhecimento o mandado de segurança, quando impetrado contra deliberação do
Tribunal de Contas da União que consubstancie simples recomendação (MS
26.503/DF, Rel. Min. MARCO AURÉLIO), porque configuradora, em tal hipótese, de
“mera sugestão sem caráter impositivo (...)” (MS 21.519/PR, Rel. p/ o acórdão
Min. MOREIRA ALVES).
Ocorre, no entanto, tal
como por mim precedentemente assinalado, que a deliberação do E. Tribunal de
Contas da União, ora questionada nesta sede mandamental, traduz, na espécie em
exame, determinação, que, por efeito de sua natureza mesma, revela-se
impregnada de caráter impositivo.
Por tal razão, e por
entender admissível esta impetração, tenho por cabível a presente ação de
mandado de segurança.
Sendo esse o contexto,
passo a apreciar o pedido de medida cautelar.
E, ao fazê-lo, indefiro-o,
pois entendo não satisfeita a exigência pertinente à cumulativa ocorrência dos
requisitos relativos ao “periculum in mora” e ao “fumus boni juris”.
Com efeito, impende
reconhecer, desde logo, que assiste, ao Tribunal de Contas, poder geral de
cautela. Trata-se de prerrogativa institucional que decorre, por implicitude,
das atribuições que a Constituição expressamente outorgou à Corte de Contas.
Entendo, por isso mesmo,
que o poder cautelar também compõe a esfera de atribuições institucionais do
Tribunal de Contas, pois se acha instrumentalmente vocacionado a tornar efetivo
o exercício, por essa Alta Corte, das múltiplas e relevantes competências que
lhe foram diretamente outorgadas pelo próprio texto da Constituição da
República.
Isso significa que a
atribuição de poderes explícitos, ao Tribunal de Contas, tais como enunciados
no art. 71 da Lei Fundamental da República, supõe que se reconheça, a essa
Corte, ainda que por implicitude, a possibilidade de conceder provimentos
cautelares vocacionados a conferir real efetividade às suas deliberações
finais, permitindo, assim, que se neutralizem situações de lesividade, atual ou
iminente, ao erário.
Impende considerar, no
ponto, em ordem a legitimar esse entendimento, a formulação que se fezem torno dos poderes
implícitos, cuja doutrina - construída pela Suprema Corte dos Estados Unidos da
América no célebre caso McCULLOCH v. MARYLAND (1819) - enfatiza que a outorga
de competência expressa a determinado órgão estatal importa em deferimento
implícito, a esse mesmo órgão, dos meios necessários à integral realização dos
fins que lhe foram atribuídos.
Na realidade, o exercício
do poder de cautela, pelo Tribunal de Contas, destina-se a garantir a própria
utilidade da deliberação final a ser por ele tomada, em ordem a impedir que o
eventual retardamento na apreciação do mérito da questão suscitada culmine por
afetar, comprometer e frustrar o resultado definitivo do exame da controvérsia.
Torna-se essencial
reconhecer - especialmente em função do próprio modelo brasileiro de
fiscalização financeira e orçamentária, e considerada, ainda, a doutrina dos
poderes implícitos (MARCELO CAETANO, “Direito Constitucional”, vol. II/12-13,
item n. 9, 1978, Forense; CASTRO NUNES, “Teoria e Prática do Poder Judiciário”,
p. 641/650, 1943, Forense; RUI BARBOSA, “Comentários à Constituição Federal
Brasileira”, vol. I/203-225, coligidos e ordenados por Homero Pires, 1932,
Saraiva, v.g.) - que a tutela cautelar apresenta-se como instrumento processual
necessário e compatível com o sistema de controle externo, em cuja
concretização o Tribunal de Contas desempenha, como protagonista autônomo, um
dos mais relevantes papéis constitucionais deferidos aos órgãos e às
instituições estatais.
Cumpre assinalar, neste
ponto, que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o MS 24.510/DF,
Rel. Min. ELLEN GRACIE, reconheceu assistir, ao Tribunal de Contas, esse poder
geral de cautela:
“PROCEDIMENTO LICITATÓRIO. IMPUGNAÇÃO. COMPETÊNCIA DO TCU.
CAUTELARES. CONTRADITÓRIO. AUSÊNCIA DE INSTRUÇÃO.
1 - Os participantes de licitação têm direito à fiel observância
do procedimento estabelecido na lei e podem impugná-lo administrativa ou
judicialmente. Preliminar de ilegitimidade ativa rejeitada.
2 - Inexistência de direito líquido e certo. O Tribunal de Contas
da União tem competência para fiscalizar procedimentos de licitação, determinar
suspensão cautelar (artigos 4º e 113, § 1º e 2º da Lei nº 8.666/93), examinar
editais de licitação publicados e, nos termos do art. 276 do seu Regimento
Interno, possui legitimidade para a expedição de medidas cautelares para
prevenir lesão ao erário e garantir a efetividade de suas decisões).
3 - A decisão encontra-se fundamentada nos documentos acostados
aos autos da Representação e na legislação aplicável.
4 - Violação ao contraditório e falta de instrução não
caracterizadas.
Denegada a ordem.” (grifei)
Vale referir, ainda, que se revela processualmente lícito, ao
Tribunal de Contas, conceder provimentos cautelares “inaudita altera parte”,
sem que incida, com essa conduta, em desrespeito à garantia constitucional do
contraditório.
É que esse procedimento
mostra-se consentâneo com a própria natureza da tutela cautelar, cujo
deferimento, pelo Tribunal de Contas, sem a audiência da parte contrária,
muitas vezes se justifica em situação de urgência ou de possível frustração da
deliberação final dessa mesma Corte de Contas, com risco de grave comprometimento
para o interesse público.
Não se pode ignorar que os
provimentos de natureza cautelar - em especial aqueles qualificados pela nota
de urgência - acham-se instrumentalmente vocacionados a conferir efetividade ao
julgamento final resultante do processo principal, assegurando-se, desse modo,
não obstante em caráter provisório, plena eficácia e utilidade à tutela estatal
a ser prestada pelo próprio Tribunal de Contas da União.
Essa visão do tema tem o
beneplácito de autorizado magistério doutrinário, que, embora exposto a
propósito do processo judicial, traduz lição que se mostra inteiramente
aplicável aos procedimentos administrativos, notadamente àqueles instaurados
perante o Tribunal de Contas, considerando-se, para esse efeito, os princípios e
diretrizes que regem a teoria geral do processo (SYDNEY SANCHES, “Poder
Cautelar Geral do Juiz no Processo Civil Brasileiro”, p. 30, 1978,RT; JOSÉ FREDERICO MARQUES,
“Manual de Direito Processual Civil”, vol. 4/335, item n. 1.021, 7ª ed., 1987,
Saraiva; CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, “A Instrumentalidade do Processo”, p.
336/371, 1987, RT; VITTORIO DENTI, “Sul Concetto di funzione cautelare”, “in”
“Studi P. Ciapessoni”, p. 23/24, 1948; PIERO CALAMANDREI, “Introduzione allo
Studio Sistematico dei Provvedimenti cautelari”, p. 20, item n. 8, Pádua, 1936,
Cedam; HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, “Tutela Cautelar”, vol. 4/ 17, 1992, Aide,
v.g.).
Daí a possibilidade, ainda
que excepcional, de concessão, sem audiência da parte contrária, de medidas
cautelares, por deliberação do Tribunal de Contas, sempre que necessárias à
neutralização imediata de situações de lesividade, atual ou iminente, ao
interesse público.
Eis porque entendo, em sede
de mera delibação, que não se teria configurado, na espécie, ofensa à garantia
do contraditório, ainda mais se se tiver presente a circunstância -
juridicamente relevante - de que se ensejou, à ora impetrante, em momento
procedimentalmente oportuno, a possibilidade de exercer o direito de defesa,
com os meios e recursos a ele inerentes, como se verifica dos elementos
documentais concernentes ao processo TC-008.538/2006-0 produzidos nestes autos,
notadamente daqueles veiculados nas informações oficiais prestadas pelo E.
Tribunal de Contas da União.
Não se pode desconsiderar,
neste ponto, que declarações emanadas de servidores públicos, quando prestadas,
como no caso, em razão do ofício que exercem, qualificam-se pela nota da
veracidade, prevalecendo eficazes até que sobrevenha prova idônea e inequívoca
em sentido contrário.
E a razão é uma só:
precisamente porque constantes de documento subscrito por agente estatal, tais
informações devem prevalecer, pois, como se sabe, as declarações emanadas de
servidores públicos, como aquela de fls. 327/351, gozam, quanto ao seu
conteúdo, da presunção de veracidade, consoante assinala o magistério da
doutrina (CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, “Curso de Direito Administrativo”,
p. 373, item n. 59, 13ª ed., 2001, Malheiros; MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO,
“Direito Administrativo”, p. 182/184, item n. 7.6.1, 20ª ed., 2007, Atlas;
DIOGENES GASPARINI, “Direito Administrativo”, p. 63, item n. 7.1, 1989,
Saraiva; JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, “Direito Administrativo Brasileiro”, p. 54, item
n. 43, 1999, Forense; JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, “Manual de Direito
Administrativo”, p. 116, item n. 2, 12ª ed., 2005, Lumen Juris).
Esse entendimento - que põe
em evidência o atributo de veracidade inerente aos atos emanados do Poder
Público e de seus agentes - é perfilhado, igualmente, pela jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal (RTJ 86/212 - RTJ 133/1235-1236 - RTJ 161/572-573,
v.g.), notadamente quando tais declarações compuserem e instruírem, como na
espécie, as informações prestadas pela própria autoridade apontada como
coatora:
“- As informações prestadas em mandado de segurança pela
autoridade apontada como coatora gozam da presunção ‘juris tantum’ de
veracidade.”
(MS 20.882/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO)
Impende assinalar, ainda, que o E. Tribunal de Contas da União, ao
conceder a medida cautelar em questão, cumpriu a obrigação constitucional – que
se impõe a todos os órgãos do Estado – de fundamentar a sua deliberação, em
ordem a não incidir em prática arbitrária, assim evitando, com a exposição dos
fundamentos de fato e de direito subjacentes ao ato decisório, a censura que
faz a doutrina, como resulta claro do magistério do eminente Professor HUMBERTO
THEODORO JUNIOR (“Curso de Direito Processual Civil”, vol. II/515, item n.
1.022, 39ª ed., 2006, Forense):
“A sumariedade do
conhecimento inicial nessas medidas não se confunde, porém, com puro arbítrio
do julgador. (...) De sorte que a faculdade conferida ao juiz no art. 804 só
deve ser exercitada quando a inegável urgência da medida e as circunstâncias de
fato evidenciarem que a citação do réu poderá tornar ineficaz a providência
preventiva. E, pelas mesmas razões, a decisão, ainda que sucinta, deve ser
fundamentada.” (grifei)
A longa fundamentação do
Acórdão nº 1.379/2006 (fls. 61/93), com a indicação dos motivos de fato e de direito que deram
suporte à concessão do provimento cautelar, apenas traduz a fidelidade com que
se houve o E. Tribunal de Contas da União no cumprimento de seus deveres
constitucionais.
De outro lado, mostra-se importante acentuar que o E. Tribunal de
Contas da União, na deliberação ora questionada, não determinou a anulação da
Concorrência nº 3/2004 e não suspendeu, ele próprio, a execução do Contrato nº
16/2006, mas, como resulta claro das informações de fls. 327/351, limitou-se a
ordenar, à autoridade competente (Diretor-Presidente da Codeba, fls. 58, item
n. 9.4), que assim procedesse, sob pena de “imediata comunicação ao Congresso
Nacional a quem compete adotar o ato de sustação” (fls. 328).
Cabe registrar, ainda, por relevante, que esse procedimento do E.
Tribunal de Contas da União parece estar em consonância com a jurisprudência
desta Suprema Corte, que já decidiu, por mais de uma vez, a propósito das
atribuições daquela Alta Corte de Contas, que “(...) O Tribunal de Contas da
União - embora não tenha poder para anular ou sustar contratos administrativos
- tem competência, conforme o art. 71, IX, para determinar à autoridade
administrativa que promova a anulação do contrato e, se for o caso, da
licitação de que se originou” (MS 23.550/DF, Rel. p/ o acórdão Min. SEPÚLVEDA
PERTENCE).
Todas essas razões levam-me a entender inviável a pretendida
suspensão cautelar de eficácia da deliberação emanada do E. Tribunal de Contas
da União.
É importante rememorar, neste ponto, que o deferimento da medida
liminar, resultante do concreto exercício do poder cautelar geral outorgado aos
juízes e Tribunais, somente se justifica em face de situações que se ajustem
aos pressupostos referidos no art. 7º, II, da Lei nº 1.533/51: a existência de
plausibilidade jurídica (“fumus boni juris”), de um lado, e a possibilidade de
lesão irreparável ou de difícil reparação (“periculum in mora”), de outro.
Sem que concorram esses dois requisitos - que são necessários,
essenciais e cumulativos -, não se legitima a concessão da medida liminar,
consoante enfatiza a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:
“Mandado de segurança. Liminar. Embora esta medida tenha caráter
cautelar, os motivos para a sua concessão estão especificados no art. 7º, II da
Lei nº 1.533/51, a saber: a) relevância do fundamento da impetração; b) que do
ato impugnado possa resultar a ineficácia da medida, caso seja deferida a
segurança.
Não concorrendo estes dois requisitos, deve ser denegada a
liminar.”
(RTJ 112/140, Rel. Min. ALFREDO BUZAID - grifei)
Sendo assim, e por entender ausente o requisito pertinente à
plausibilidade jurídica da pretensão mandamental ora em exame, indefiro o
pedido de medida liminar, ante a inocorrência de seus pressupostos
legitimadores.
Publique-se.
Brasília, 23 de maio de 2007.
Ministro CELSO DE MELLO
Relator
STF
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