terça-feira, 2 de outubro de 2012

Aula do Ministro do STF Celso de Mello sobre estado, democracia e cidadania.




Em julgamento do “mensalão” no STF, Ministro CELSO DE MELLO, na AP 470/MG, na sessão plenária de
1º de outubro de 2012, em seu do voto, deu uma verdadeira e brilhante aula sobre estado, democracia e cidadania. Confiram a seguir, fragmentos do voto do Ilmº Sr. Ministro publicados no site oficial do STF:
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Entendo que o Ministério Público  expôs na peça acusatória
eventos delituosos  revestidos  de extrema gravidade  e imputou aos réus ora em julgamento ações moralmente inescrupulosas e penalmente ilícitas que culminaram,  a partir de um projeto criminoso por eles concebido  e executado,  em verdadeiro assalto à Administração Pública, com graves e irreversíveis danos ao princípio ético-jurídico da probidade administrativa  e com sério comprometimento da dignidade da função pública,  além  de lesão a valores outros, como a integridade do sistema financeiro nacional, a paz pública, a credibilidade  e a estabilidade da ordem econômico-financeira do País, postos sob a imediata tutela jurídica do ordenamento penal.
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Quero registrar,  neste ponto, Senhor Presidente,  tal como
salientei em voto anteriormente proferido neste Egrégio Plenário, que o ato de corrupção constitui um gesto de perversão da ética do poder  e  da ordem jurídica,  cuja observância se impõe  a todos os cidadãos desta República  que não tolera o poder que corrompe  nem admite o poder que se deixa corromper.

Quem transgride  tais mandamentos,  não importando a sua posição estamental,  se patrícios ou  plebeus,  governantes ou  governados, expõe-se à severidade das leis penais e, por tais atos, o corruptor e o corrupto devem ser punidos, exemplarmente, na forma da lei.

Este processo criminal  revela a face sombria daqueles que,  no controle do aparelho de Estado,  transformaram a cultura da transgressão em prática ordinária  e desonesta de poder, como se o exercício das instituições da República pudesse ser degradado a uma função de mera satisfação instrumental  de interesses governamentais e de desígnios pessoais.

Fácil constatar,  portanto,  considerados os diversos elementos legitimamente produzidos nestes autos e claramente demonstrados pelo 2 eminente Relator,  que a conduta dos réus, notadamente daqueles que ostentam  ou  ostentaram funções de governo,  não importando se no Poder Legislativo ou no Poder Executivo, maculou o próprio espírito republicano.

Em assuntos de Estado e de Governo,  nem  o cinismo,  nem  o pragmatismo, nem a ausência de senso ético, nem o  oportunismo podem justificar,  quer  juridicamente,  quer moralmente,  quer institucionalmente, práticas criminosas, como a corrupção parlamentar  ou as ações corruptivas de altos dirigentes do Poder Executivo ou de agremiações partidárias.

Extremamente precisa  a observação,  sempre erudita, do Professor Celso Lafer,  quando, ao discorrer sobre o espírito republicano, acentua, a partir de Montesquieu, que “o princípio que explica a dinâmica de uma República, ou seja, o sentimento que a faz durar e prosperar, é a virtude. É nesse contexto que se pode dizer que a motivação ética é de natureza republicana. Isso passa (...) pela virtude civil do desejo de viver com dignidade e pressupõe que ninguém poderá viver com dignidade numa comunidade  política corrompida”.
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É por isso,  Senhores Ministros,  que a concepção republicana de poder mostra-se absolutamente  incompatível com qualquer prática governamental  tendente a restaurar  a inaceitável teoria do Estado patrimonial.


Com o objetivo de proteger valores fundamentais,  Senhor Presidente,  tais como se qualificam aqueles consagrados  nos princípios da transparência, da igualdade, da moralidade  e da impessoalidade, o sistema constitucional instituiu  normas e estabeleceu diretrizes destinadas a obstar práticas que culminem por patrimonializar o poder governamental,  convertendo-o, em razão de uma inadmissível inversão dos postulados republicanos, em verdadeira “res domestica”,  degradando-o,  assim,  à condição subalterna de instrumento de mera dominação do Estado,  vocacionado, não a servir ao interesse público  e ao bem comum,  mas, antes, a atuar  como incompreensível e inaceitável meio de satisfazer conveniências pessoais e de realizar aspirações governamentais e partidárias.
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O fato é um só, Senhor Presidente: quem tem o poder e a força do Estado, em suas mãos, não tem o direito de exercer, em seu próprio benefício, a autoridade que lhe é conferida pelas leis da República.

A gravidade da corrupção governamental, inclusive aquela praticada no Parlamento da República,  evidencia-se pelas múltiplas consequências que dela decorrem,  tanto aquelas que se projetam no plano da criminalidade oficial  quanto as que se revelam  na esfera civil (afinal, o ato de corrupção  traduz um gesto de improbidade administrativa)  e,  também,  no âmbito político-institucional,  na medida em que a percepção de vantagens indevidas representa  um ilícito constitucional, pois, segundo prescreve o art. 55, § 1º, da Constituição,  a percepção de vantagens indevidas  revela um ato atentatório ao decoro parlamentar, apto,  por si só, a legitimar a perda do mandato legislativo, independentemente de prévia condenação criminal.

A ordem jurídica,  Senhor Presidente,  não pode permanecer indiferente a condutas de membros do Congresso Nacional – ou de quaisquer outras autoridades da República – que hajam eventualmente incidido em  censuráveis desvios éticos e reprováveis  transgressões criminosas, no desempenho da elevada função de representação política do Povo brasileiro.

Sabemos todos que o cidadão tem o direito de exigir que o Estado seja dirigido por administradores íntegros, por legisladores probos e por juízes incorruptíveis.
O direito ao governo honesto – nunca é demasiado reconhecê-lo – traduz uma prerrogativa insuprimível da cidadania.

A imputação, a qualquer membro do Congresso Nacional,  de atos que importem em transgressão ao decoro parlamentar  revela-se fato que assume, perante o corpo de cidadãos,  a maior gravidade, a exigir, por isso mesmo, por efeito de imposição ética emanada de um dos  dogmas essenciais da República, a repulsa por parte do Estado, tanto mais se se considerar que o Parlamento recebeu, dos cidadãos, não só o poder de representação política  e a competência para legislar, mas, também, o mandato para fiscalizar os órgãos e agentes dos demais Poderes.

Vê-se, nesse ponto, a íntima correlação entre a própria Constituição da República, em face de que prescreve o seu art. 55, § 1º, e a legislação penal.

Qualquer ato de ofensa ao decoro parlamentar, como a aceitação criminosa de suborno,  culmina por atingir,  injustamente,  a própria respeitabilidade institucional do Poder Legislativo,  residindo, nesse ponto,  a legitimidade ético-jurídica do procedimento constitucional de cassação do mandato parlamentar,  em ordem a excluir, da comunhão dos legisladores, aquele – qualquer que seja – que se haja mostrado indigno do desempenho da  magna função de representar o Povo, de formular a legislação da República  e  de controlar as instâncias governamentais do poder.
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Importante destacar,  Senhor Presidente, as  gravíssimas consequências que resultam do ato indigno (e criminoso) do parlamentar  que comprovadamente vende o seu voto  e que também comercializa a sua atuação legislativa  em troca  de dinheiro ou de outras indevidas vantagens.
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A corrupção deforma o sentido republicano de prática política, compromete a integridade dos valores que informam e dão significado à própria ideia de República,  frustra a consolidação das instituições,  compromete a execução de políticas públicas em áreas sensíveis  como as da saúde, da educação, da segurança pública e do próprio desenvolvimento do País, além de afetar o próprio princípio democrático.


Daí os importantes compromissos internacionais  que o Brasil assumiu em relação  ao combate à corrupção,  como o evidencia  a subscrição, por nosso País, da Convenção Interamericana contra a Corrupção (celebrada na Venezuela em 1996) e da Convenção das Nações Unidas (celebrada em Mérida, no México, em 2003).

As razões determinantes  da celebração dessas convenções internacionais (uma,  de caráter regional,  e outra,  de projeção global)  residem,  basicamente,  na preocupação  da comunidade internacional com a extrema gravidade dos problemas e das consequências nocivas decorrentes da corrupção para a estabilidade e a segurança da sociedade, eis que essa prática criminosa enfraquece as instituições e os valores da democracia, da ética e da justiça, 5 além de comprometer a própria sustentabilidade do Estado democrático de direito,  considerados os vínculos entre a corrupção e outras modalidades de delinquência, com particular referência para a criminalidade organizada, a delinquência governamental e a lavagem de dinheiro.
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Esses  vergonhosos atos de corrupção parlamentar,  profundamente lesivos à dignidade do ofício legislativo  e à respeitabilidade do Congresso Nacional,  alimentados por transações obscuras idealizadas e implementadas em altas esferas governamentais,  com o objetivo  de fortalecer a base de apoio político e de sustentação legislativa no Parlamento brasileiro, devem ser condenados e punidos com o peso e o rigor das leis desta República, porque significam tentativa imoral e ilícita de manipular,  criminosamente, à margem do sistema constitucional, o processo democrático,  comprometendo-lhe a integridade,  conspurcando-lhe a pureza  e suprimindo-lhe os índices essenciais de legitimidade,  que representam atributos necessários para justificar a prática honesta e o exercício regular do poder aos olhos dos cidadãos desta Nação.

Esse quadro de anomalia, Senhor Presidente,  revela as gravíssimas consequências  que derivam  dessa aliança profana, desse gesto infiel e indigno de agentes corruptores, públicos e privados, e de parlamentares corruptos, em comportamentos criminosos, devidamente comprovados,  que só fazem  desqualificar  e desautorizar, perante as leis criminais do País, a atuação desses marginais do Poder.
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