quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Lei Orgânica do Município. Necessidade de autorização da Câmara Municipal para elaboração de convênios. Ação Direta de Inconstitucionalidade

Ação Direta de Inconstitucionalidade

Autos nº162.781-0/6-00
Autor: Prefeito Municipal de Cravinhos
Objeto: art.6º inciso XIV da Lei Orgânica Municipal de Cravinhos



Ementa:
1) Lei Orgânica do Município. Necessidade de autorização da Câmara Municipal para elaboração de convênios, acordos ou tratados, dos quais decorram despesas não previstas na lei orçamentária.
2) Violação da regra da separação de poderes (art.5º, art.47 II e XIV, e art.144 da Constituição Paulista). Atos típicos de gestão administrativa, que envolvem o planejamento, a direção, a organização e a execução de medidas de governo.
3) Criação de mecanismo de controle externo não previsto na sistemática constitucional. Violação da simetria que deve existir, na matéria, com relação aos modelos constitucionais de controle da Administração. (art. 33, 144 e 150 da Constituição do Estado)
4) Inconstitucionalidade reconhecida.


Colendo Órgão Especial
Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator


1)    Relatório.

         Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Senhor Prefeito Municipal de Cravinhos, tendo como alvo o art.6º inciso XIV da Lei Orgânica Municipal de Cravinhos, sob a alegação de que tal dispositivo ofende a regra da separação de poderes.

         O pedido de liminar foi indeferido (fls.69/70).

         Citado, o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou da defesa do ato normativo (fls.79/81).

         A Presidência da Câmara Municipal prestou informações (fls.83/87).

         Este é o breve relato do que consta dos autos.

2) Fundamentação.

2.1) Violação da regra da separação de poderes.

         O dispositivo impugnado, da Lei Orgânica do Município de Cravinhos, tem a seguinte redação:

“Art.6º. Cabe à Câmara Municipal, com sanção do Prefeito, legislar assuntos de interesse local, observadas as determinações e a hierarquia constitucional, suplementar a legislação Federal e Estadual e fiscalizar, mediante controle externo, a Administração direta ou indireta, as fundações e as empresas em que o Município detenha a maioria do capital social com direito a voto e especialmente:

(...)

XIV – autorizar ou aprovar convênios, acordos ou contratos de que resultem para o Município encargos não previstos na lei orçamentária.”

            Entretanto, tal dispositivo é verticalmente incompatível com nossa ordem constitucional.

         Não nos pareceria correto afirmar que a hipótese examinada nestes autos seja de iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo.

         As matérias cuja iniciativa legislativa cabe apenas ao Executivo são expressamente previstas no art.24 da Constituição Paulista, entre as quais não se encontra aquela tratada no ato normativo aqui examinado.

         Ademais, já pacificou o E. STF o entendimento de que as hipóteses de iniciativa reservada, referindo-se a direito estrito, devem ser interpretadas restritivamente (Nesse sentido, v.g.: MS 22.690, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 17-4-97, DJ de 7-12-06).

         Entretanto, no caso ora analisado houve violação do princípio da separação de poderes (art.5º c.c. o art.144 da constituição Paulista).

         É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

         O legislador municipal, na hipótese analisada, acolheu iniciativa parlamentar, limitando o exercício, por parte do Chefe do Executivo, da regular administração do Município.

            Referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

            Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ª ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).

            Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

         Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes: ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.; ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008; entre outros.

            Anote-se que, no E. STF é pacífico o entendimento no sentido de que a exigência de autorização legislativa para a celebração de convênios, acordos ou contratos, é inconstitucional, por violar a regra da separação de poderes: ADI 342/PR, rel. Min. SYDNEY SANCHES, j. 06/02/2003, DJ 11-04-2003; ADI 1166/DF, rel. Min. ILMAR GALVÃO, j. 05/09/2002, DJ 25-10-2002; ADI 770/MG, rel. Min. ELLEN GRACIE, j. 01/07/2002, DJ 20-09-2002; ADI 462/BA, rel. Min. MOREIRA ALVES, j. 20/08/1997, DJ 18-02-2000; entre outros.

2.2) Violação da simetria com relação ao sistema de controle externo.

         Também por outro fundamento se chegará à conclusão de que o dispositivo impugnado é inconstitucional.

         Tanto a Constituição Federal, como a Estadual, já estabelecem formas de controle interno e externo, cuja essência deve ser seguida pelo legislador Municipal.

         Recorde-se a propósito o art.31 §1º da CR/88 prevê que o controle externo da Câmara Municipal sobre o Executivo será “exercido com o auxílio dos Tribunais de Contas dos Estados ou do Município ou dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios, onde houver”.

         Por outro lado, o art.33 da Constituição Paulista prevê que o controle externo seja exercido pela Assembléia Legislativa, com o auxílio do Tribunal de Contas, com várias atribuições contidas em seus diversos incisos, que, em linhas gerais, replicam as atribuições do Tribunal de Contas da União, cf. art.71 da CR/88.

         Por seu turno, o art.150 da Carta Paulista reitera a existência de sistemas de controle interno, em cada Poder, e externo pela Câmara Municipal, com remissão expressa ao art.31 da CR/88.

         Deste modo, dentro das sistemáticas de controle interno e externo, previstas tanto no texto da Constituição Federal, como na Estadual, não se identifica, nem de modo distante, metodologia de fiscalização que se assemelhe àquela adotada pelo legislador municipal, no dispositivo impugnado na presente ação: necessidade de prévio exame e autorização, pelo Legislativo local, de convênios, acordos e contratos administrativos.

         A matéria já foi pacificada pelo E. STF, como se infere dos seguintes precedentes: ADI 2.911, Rel. Min. Carlos Britto, julgamento em 10-8-06, DJ de 2-2-07; ADI 1.905-MC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 19-11-98, DJ de 5-11-04; ADI 3.046, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 15-4-04, DJ de 28-5-04; entre outros.

         Esse posicionamento tem, do mesmo modo, sido prestigiado por esse E. Tribunal de Justiça: ADI 12.345-0, rel. Carlos Ortiz, j. 15.05.91; ADI 096.538-0, rel. Viseu Júnior, j. 12.02.03, v.u.; ADI 123.145-0/9-00, rel. Aloísio de Toledo César, j.19.04.06 – m.v.; ADI 128.082-0/7-00, rel. Denser de Sá, j. 19.07.06, v.u.

         Assim, os dispositivos impugnados na presente ação, nitidamente: (a) violaram o necessário equilíbrio e harmonia que devem existir entre os Poderes Legislativo e Executivo; (b) fizeram-no criando sistemática de controle não prevista na nossa ordem constitucional; (c) desrespeitaram, dessa forma, o “modelo” traçado pelo constituinte para exercício do sistema de “freios e contrapesos”.

3) Conclusão.

         Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade do inciso XIV do art.6º da Lei Orgânica do Município de Cravinhos.

São Paulo, 12 de agosto de 2008.





Maurício Augusto Gomes
Procurador de Justiça
no exercício de função delegada
pelo Procurador-Geral de Justiça


        


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