Por Ives Gandra Silva Martins
Publicação original do Jornal O ESTADO DE SÃO PAULO
Depois de muita expectativa - e com grande exposição na mídia -, foi constituída Comissão para "resgatar a verdade histórica" de um período de 42 anos da vida política nacional, objetivando, fundamentalmente, detectar os casos de tortura na luta pelo poder. A História é contada por historiadores, que têm postura imparcial ao examinar os fatos que a conformaram, visto serem cientistas dedicados à análise do passado. Os que ambicionam o poder fazem a História, mas, por dela participarem, não têm a imparcialidade necessária para a reproduzir.
A Comissão da Verdade não conta, em sua composição,
com nenhum historiador capaz de apurar, com rigor científico, a verdade
histórica da tortura no Brasil, de 1946 a 1988. O primeiro reparo, portanto,
que faço à sua constituição é o de que "não historiadores" foram
encarregados de contar a História daquele período. Conheço seis dos sete
membros da Comissão e tenho por eles grande respeito, além de amizade com
alguns. Não possuem, no entanto, a qualificação científica para o trabalho que
lhes foi atribuído.
O segundo reparo é que estiveram envolvidos com os
acontecimentos daquele período. Em debate com o ex-deputado Ayrton Soares, em
programa de Mônica Waldvogel, perguntou-me o amigo e colega - que defendia a
constituição de Comissão para essa finalidade, enquanto eu não via necessidade
de sua criação - se eu participaria dela, se fosse convidado. Disse-lhe que
não, pois, apesar de ser membro da Academia Paulista de História, estive
envolvido nos acontecimentos. Inicialmente, dando apoio ao movimento para
evitar a ameaça de ditadura e garantir as eleições de 1965, como, de resto,
fizeram todos os jornais da época. No dia 2 de setembro de 1964, o jornal O
Globo, em seu editorial, escrevia: "Vive a nação dias gloriosos. Porque souberam
unir-se todos os patriotas, independentemente de vinculações políticas, simpatias
ou opinião sobre problemas isolados, para salvar o que é essencial à
democracia, a lei, a ordem".
A partir do Ato Institucional n.º 2/65, que
suprimiu as eleições daquele ano, opus-me a ele, o ponto de, em 13 de fevereiro
de 1969, ter sido pedido o confisco de meus bens e a abertura de um inquérito
policial militar sobre minhas atividades de advogado, por defender empresa que
não agradava ao regime. O mais curioso é que continuei como advogado, tendo
derrubado a prisão de seus diretores, no Supremo Tribunal Federal, em 1971, por
5 a 3, à época em que os magistrados não se curvavam ao poder da mídia ou dos
detentores do poder. Embora arquivados os dois pedidos, o fato de ter sido
anunciada a abertura do processo contra mim, pelos jornais, com grande
sensacionalismo, tive minha advocacia abalada por alguns anos. Nem por isso
pedi indenizações milionárias ao governo atual, nem pedirei. À época apoiei a
Anistia Internacional, tendo entrado para seus quadros sob a presidência de
Rodolfo Konder, e fui conselheiro da OAB-SP por seis anos, antes da
redemocratização. À evidência, faltar-me-ia, por mais que quisesse ser
imparcial, a tranquilidade necessária para examinar os fatos com isenção.
Envolvidos da época não podem adotar uma postura neutra ao contar os fatos
históricos de que participaram.
O terceiro reparo é que alguns de seus membros
pretendem que a verdade seja seletiva. Tortura praticada por guerrilheiro não
será apurada, só a que tenha sido levada a efeito por militares e agentes
públicos. O que vale dizer: lança-se a imparcialidade para o espaço, dando a
impressão que guerrilheiro, quando tortura, pratica um ato sagrado; já os
militares, um ato demoníaco. Bem disse o vice-presidente da República,
professor Michel Temer, em São Paulo, no último dia 17, que os trabalhos da
Comissão devem ser abrangentes e procurar descobrir os torturadores dos dois
lados.
O quarto reparo é que muitos guerrilheiros foram
treinados em Cuba, pela mais sangrenta ditadura das Américas no século 20.
Assassinaram-se, sem direito a defesa, nos paredões de Fidel Castro mais
pessoas do que na ditadura de Pinochet, em que também houve muitas mortes sem
julgamento adequado. Um bom número de guerrilheiros não queria, pois, a
democracia, mas uma ditadura à moda cubana. Radicalizaram o processo de
redemocratização a tal ponto que a imprensa passou a ser permanentemente
censurada. Estou convencido de que esse radicalismo e os ideais da ditadura
cubana que o inspiraram apenas atrasaram o processo de redemocratização e
dificultaram uma solução acordada e não sangrenta.
O quinto aspecto que me parece importante destacar
é que, a meu ver, a redemocratização se deveu ao trabalho da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB), que se tornou a voz e os pulmões da sociedade.
Liderada por um brasileiro da grandeza de Raimundo Faoro, conseguiu, inclusive,
em pleno período de exceção, com apoio dos próprios guerrilheiros, aprovar a
Lei da Anistia (1979), permitindo, pois, que todos voltassem à atividade
política. Substituindo as armas de fogo pela arma da palavra, a OAB deu início
à verdadeira redemocratização do País.
Por fim, num país que deveria olhar para o futuro,
em vez de remoer o passado - tese que levou guerrilheiros, advogados e o
próprio governo militar a acordarem a Lei da Anistia, colocando uma pedra sobre
aqueles tempos conturbados -, a Comissão é inoportuna. Parafraseando
Vicente Rao, esta volta ao pretérito parece ser contra o "sistema da
natureza, pois para o tempo que já se foi, fará reviver as nossas dores, sem
nos restituir nossas esperanças" (O Direito e a Vida dos Direitos, Ed.
Revista dos Tribunais, 2004, página 389).
Nenhum comentário:
Postar um comentário