domingo, 24 de março de 2013

Posicionamento do STF na contratação temporária para a Administração Pública


Inq 1916 / RS - RIO GRANDE DO SUL
INQUÉRITO
Relator(a):  Min. SEPÚLVEDA PERTENCE
Julgamento: 07/04/2003
Publicação
DJ 11/04/2003  PP-00046
Partes
INQUÉRITO N. 1.916-0
PROCED.: RIO GRANDE DO SUL
RELATOR : MIN. SEPÚLVEDA PERTENCE
AUTOR(A/S)(ES): MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
INDIC.(A/S): TARSO FERNANDO HERZ GENRO
Decisão
DESPACHO:  Oficiando pelo Ministério Público Federal, o il.
Procurador-Geral da República Geraldo Brindeiro manifestou-se nestes termos (f. 280/288):
"Trata-se de notitia criminis apresentada por JOÃO ANTONIO DIB, vereador do município de Porto Alegre-RS, que imputa, em tese, a prática do crime de responsabilidade previsto no art. 1.º, inciso XIII, do Decreto-lei n.º 201/67 (admissão irregular de funcionários da Administração Público) ao ex-Prefeito TARSO GENRO, que atualmente ocupa o cargo de Secretário Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social.

Segundo o noticiante, o então Prefeito, no transcurso de seu mandato eletivo, teria contratado temporariamente pessoal na área da saúde por meio de "cartas-contrato", sem a prévia realização de concurso público, o que vulneraria a norma inserta no art. 37, inciso IX, da Carta Magna, e a Lei municipal n.º 7.770/96.
Inicialmente endereçada à Procuradoria de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul, o expediente administrativo instaurado em razão da notitia foi posteriormente remetido a uma das Promotorias Criminais com atuação perante o foro da capital (fls. 273), por ter deixado de ocupar o noticiado o cargo de Prefeito Municipal.
Vislumbrando o fórum attractionis do Colendo Supremo Tribunal Federal, para processar e julgar eventual crime cometido pelo noticiado, em virtude do cargo por ele ocupado atualmente, houve por bem o MM. Juízo da 7.ª Vara Criminal de Porto Alegre-RS em remeter os autos a esse Excelso Pretório, conforme despacho de fls. 276.
Distribuído o feito a Vossa Excelência, vieram os autos a esta Procuradoria-Geral da República para manifestação.
De saída, cumpre reconhecer a competência dessa Suprema Corte para apreciar o presente feito.
O cargo de Secretário Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, ora ocupado pelo noticiado, foi previsto e regulado na Medida Provisória n.º 103, de 1.º de Janeiro de 2003, que dispõe sobre a Organização da Presidência da República e dos Ministérios.
Especificamente sobre o cargo ocupado pelo noticiado, assim prevê o diploma legal:
"Art. 38. São criados os cargos de natureza especial de Secretário Especial do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, de Secretário Especial de Aqüicultura e Pesca, de Secretário Especial dos Direitos Humanos e de Secretário Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República.
§ 1o Os cargos referidos no caput terão prerrogativas, garantias, vantagens e direitos equivalentes aos de Ministro de Estado.
§ 2o A remuneração dos cargos referidos no caput é de R$ 8.280,00 (oito mil duzentos e oitenta reais)."

A equiparação do cargo de Secretário Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social ao de Ministro de Estado atrai à espécie o preceito insculpido no art. 102, inciso I, alínea "c", da Constituição Federal. Em caso símile ao dos autos, mas que cuidava do cargo de Advogado-Geral da União, assim decidiu o
 Colendo Supremo Tribunal Federal, verbi gratia:
"Foro especial em razão da função (status de Ministro de Estado). Competência para processo e julgamento de Advogado-Geral da União, tendo em vista a edição da Medida Provisória 2.049-22, de 28-8-2000, que transforma o mencionado cargo de natureza especial em cargo de ministro de Estado, atraindo, portanto, a incidência do art. 102, I, c, da CF."
(Notícia referente ao julgamento do Inq 1660/DF - Questão de ordem - J. 06.09.2000 - Rel. Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE - veiculada no Informativo STF n.º 201)
Logo, competente é o Colendo Supremo Tribunal Federal para conduzir o presente apuratório e julgar eventual ação penal com base nele ajuizada, por força do art. 102, inciso I, "c", da Carta Maior.

Relativamente ao mérito da imputação deduzida na notitia criminis, não se vislumbra nos fatos narrados móvel suficiente a instar a persecução penal.
Os fatos noticiados nos autos - admissão irregular de funcionários públicos na Administração municipal sem a prévia realização de concurso público - se amoldariam, em tese, ao tipo descrito no inciso XIII do art. 1.º do Decreto-lei n.º 201/67. Vale mencionar o que reza o referido Decreto-lei:
"Art. 1º. São crimes de responsabilidade dos prefeitos municipais, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores:

“(...)
XIII - nomear, admitir ou designar servidor, contra expressa disposição de lei".

A maior parte das contratações noticiadas nos autos data de período anterior ao mandato em que o noticiado chefiou o Executivo municipal. Porém, é certo igualmente que contratações houve durante o mandato do noticiado.
Todavia, a legalidade de tais contratações, verdadeiramente, revela-se matéria de interpretação controversa. Com efeito, revela-se plausível a afirmação da própria Prefeitura Municipal de Porto Alegre de que as contratações se deram com esteio na Lei municipal n.º 7.770/96 e na norma inserta no inciso IX do
art. 37 da Lei Maior.
Confira-se, a respeito, o que afirmou a própria Prefeitura Municipal quando inquirida sobre as contratações (fls. 188):

"1. ASPECTOS LEGAIS:
1.1. BASE LEGAL: Art. 37, inc. IX, da Constituição Federal, art. 17, II, da Lei Orgânica do Município de Porto Alegre, e Lei n.º 7.770, de 19.01.96.
1.2. HIPÓTESE: Necessidade temporária de excepcional interesse público, desde que não possa ser desempenhada pelos servidores integrantes do quadro de pessoal, para atendimento de: (a) emergência ou calamidade pública; (b) combate a epidemias; (c) recenseamento; ou (d) atividades especiais e sazonais.
1.3. CONDIÇÃO: Recrutamento através de processo seletivo simplificado, salvo na hipótese de calamidade pública. A exigência de processo seletivo simplificado decorre dos princípios da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e acessibilidade das funções públicas. Os mesmos princípios informam a obrigatoriedade de concurso público, o qual, pelo seu rigor e complexidade, é dispensado para as admissões temporárias, satisfazendo-se o legislador com uma seleção simplificada em razão da excepcionalidade da admissão. Assim, e aliando a esses princípios os da razoabilidade e da economicidade, configura-se lícito o aproveitamento de candidatos aprovados em concurso público para as admissões temporárias, observada a ordem de classificação."
Efetivamente, embora seja discutível o conteúdo normativo da Lei municipal n.º 7.770/96, permite-se entrever, ictu oculi, que as contratações se deram com base nesse diploma legal.
Convém esclarecer: não se entenda com isso que as contratações se deram de modo regular. Aliás, a regularidade das contratações efetivamente não é objeto da persecução penal. Interesse à formação da opinio delicti o dolo, necessário à configuração do tipo, de contrariar expressão disposição de lei e de fulminar o postulado do concurso público como meio de acesso aos cargos públicos.
A simples possibilidade de controvérsia acerca da regularidade das contratações afasta a vontade livremente voltada à consecução de um fim criminoso.
Diga-se, aliás, que o noticiado, quando alertado da irregularidade de tais contratações, logrou reverter os efeitos dessas malsinadas admissões no funcionalismo municipal. A outra conclusão não chegou o Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, quando assim asseverou no julgamento do caso na seara administrativa (fls. 245/246):
"(...) constata-se a cessão da ilegalidade em relação aos 454 (quatrocentos e cinqüenta e quatro) contratos temporários noticiados no Modelo V, Título 2, Item 23 (folhas 1140 a 1155), uma vez que os mesmos encontram-se devidamente rescindidos, com comprovação nos autos.
Por derradeiro, não reúne condições de registro as 07 (sete) admissões temporárias indicadas no Modelo II, Título 2, item 53 (folha 1139) [contratações realizadas no período em que o noticiada figurava como Prefeito], uma vez que não restou comprovada a transitoriedade das funções que objetivam suprir (Auxiliares de Enfermagem, Médico Comunitário, Médico Radiologista e Técnico em Histologia). Ao revés, a prática continuada de tais contratações, observadas desde 1996, caracteriza a permanência da necessidade, exigindo o cumprimento da regra constitucional do ingresso mediante concurso público.
(...)
Isto posto, vota-se:
(...)
b) pela negativa de registro dos 07 (sete) contratos temporários descritos no Modelo II, Título 2, Item 53 (folha 1139);
c) relativamente aos atos constantes do Modelo V, Título 2, Item 23 (folhas 1140 a 1155), em número de 454 (quatrocentos e cinqüenta e quatro), os mesmos são ilegais não reunindo condições de registro. Entretanto, considerando que, neste momento, uma decisão denegatória restaria inócua, uma vez que comprovado nos autos o desfazimento daquelas admissões, declara-se cessada a ilegalidade;
Logo, em face da necessidade temporária de serviço, nos termos da legislação municipal em vigor, é que se realizaram as vergastadas admissões. Diga-se, a propósito, que a contratação em tela foi precedida do competente processo seletivo.
Não foram, portanto, desrespeitadas as normas concernentes a contratação de servidores durante a gestão do investigado, principalmente por haver legislação municipal específica regulamentando sobre as contratações temporárias. Porém, ainda assim, quando alertado da possível irregularidade da contratação, diligenciou o noticiado pela normalização da situação, tal como efetivamente reconheceu a Corte de Contas estadual.
Em caso símile ao destes autos, o Excelso Pretório assim se manifestou,
verbis:
"DECISÃO: 1. No parecer de fls. 307/312, aprovado pelo Exmo. Sr. Procurador-Geral da República, Dr. GERALDO BRINDEIRO, o ilustre Subprocurador-Geral Dr. WAGNER NATAL BATISTA resumiu a hipótese e, em seguida, opinou, nos seguintes termos:
'Este foi o teor do nosso ultimo pronunciamento: Trata-se de inquérito judicial instaurado com a finalidade de apurar as supostas contratações de agentes administrativos, sem a realização de concurso público, pela Prefeitura Municipal de São José dos Campos SP.
Com o cumprimento da diligência requerida, a qual seja o envio da Lei Complementar n.056/92 (Regime Estatutário do Município), constatamos que é autorizada a contratação temporária de excepcional interesse público, nos seguintes moldes:
'Art. 204. Consideram-se como de necessidade temporária de excepcional interesse público as contratações que visem a: I - combater surtos epidêmicos; II - fazer recenseamento ou recadastramento; III - atender a situações de calamidade pública; IV - substituir professor, ou preencher cargo ou função de professor, de modo a evitar solução de continuidade do ano letivo; V - admitir pessoal da área de saúde, quando não houver pessoal concursado disponível; VI - recrutar menores aprendizes para o programa de formação de mão de obra profissional. 1. As contratações de que trata este artigo terão dotação específica e obedecerão aos seguintes prazos: I Na hipótese do inciso II, seis meses; II Nas hipóteses dos incisos I, III, IV e V, até 1 (um) ano; III Na hipótese do inciso VI, até 48 (quarenta e oito) meses. 2. Os prazos de que trata o parágrafo anterior são improrrogáveis.
Dessa forma, para melhor se apurar se as contratações temporárias, promovidas pela Prefeitura de São José dos Campos, se enquadram nas hipóteses acima elencadas e dentro do período autorizado, requeiro que os autos sejam baixados a Superintendência da Polícia Federal em São Paulo para que se proceda a seguinte diligência: - a relação de todos os funcionários que foram contratados sem concurso público, no período de 01.01.1993 a 31.12.1996 (período em que a Deputada Angela Moraes Guadagnin exerceu o mandato de Prefeita), o cargo que exerceram e o seu período.
Retornam os autos com a diligência devidamente cumprida, consoante se observa na relação de fls. 247/296, onde estão listadas todas as pessoas que serviram a Prefeitura de São José dos Campos durante o mandato de Prefeita da ora investigada, bem como o cargo exercido, o regime a que estava sujeito e a data de admissão e demissão.
Feita uma breve análise dos dados ali constantes, pudemos observar que não foram desrespeitadas as normas concernentes a contratação de servidores durante a gestão da investigada, principalmente por haver legislação municipal específica regulamentando sobre as contratações temporárias.
Na listagem dos servidores contratados, excetuando aqueles que exerceram cargo em comissão, observa-se que a maioria dos cargos preenchidos sem concurso público era de professor, médico e auxiliares de saúde, corroborando, portanto, com as declarações da investigada prestadas perante a autoridade policial. Veja-se: '....QUE, em relação as contratações temporárias que em tese foram realizadas de forma irregulares, a declarante informa que mesmo realizando vários concursos públicos, sempre houve carência de pessoal para preenchimento de certas vagas, principalmente professores, profissionais na área de saúde e educação; QUE, diante desse fato e pela necessidade urgente da prestação dos serviços desses profissionais a Prefeitura através de um pedido das respectivas secretarias, o expediente era encaminhado para a Secretaria de
Administração, posteriormente para a Secretaria de Assuntos Jurídicos e após o parecer positivo, retornava para a Secretaria de Administração, Departamento de Recursos Humanos, que formalizava a Contratação; QUE, em relação a prorrogação de tais servidores após um período de uma ano, ocorria pelos mesmos motivos, ou seja, pela enorme dificuldade de encontrar no mercado profissionais da área de saúde e educação; (fls. 165/167).
Merecem crédito estas alegações tendo em vista os outros elementos constantes nos autos, como o relatório de arquivamento do inquérito civil público n. 0100/98-10 (fls. 145/146).
Além disso, não podemos esquecer a difícil situação vivenciada pelos Municípios brasileiros, nos quais, em sua maioria, há um déficit de servidores públicos para a demanda que deve ser suprida com os serviços prestados por estes profissionais.
No caso em tela, parece-nos que não foi outro o motivo de tantas contratações temporárias, principalmente nas áreas de educação e saúde, como se verificou na listagem dos profissionais contratados.
Por fim, cumpre ressaltar que havia Lei Municipal prevendo estas contratações e, segundo os depoimentos dos autos, mesmo havendo renovação do contrato, havia a rescisão contratual anterior e a celebração de um novo contrato, criando, dessa maneira um novo vínculo laboral, respeitados os exatos limites da lei, que dispõe que são improrrogáveis os prazos das contratações.
Dessa forma, não restando evidente a prática de crime por parte de ANGELA MORAES GUADAGNIN, requer o Ministério Público Federal o arquivamento dos presentes autos, ressalvado o disposto no artigo 18 do Código de Processo Penal. Brasília, 27 de janeiro de 2003. as.) Wagner Natal Batista Subprocurador-Geral da República APROVO: as.) GERALDO BRINDEIRO PROCURADOR-GERAL DA REPUBLICA.'

2. Em face da manifestação do titular da ação penal, que não vislumbra crime a ser punido, só resta ao Relator determinar o arquivamento requerido, nos termos dos artigos 21, XV, do R.I.S.T.F., e 3., I, da Lei n. 8.038, de 28.05.1990 e da jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal, ressalvado o disposto no artigo 18 do Código de Processo Penal.

3. Publique-se. Intimem-se."
(INQ 1462-SP - Rel.
Min. SYDNEY SANCHES - DJ 14.02.2003).
Embora a pretensa capitulação legal indique crime de responsabilidade, infração cuja natureza jurídica manifesta patente controvérsia, não há como descurar a necessária presença de uma intenção finalisticamente voltada à consecução de um resultado que vulnere o bem jurídico tutelado pelo citado diploma legal. Na hipótese em tela, não se vislumbra, pois, qualquer vulneração à higidez da administração, tampouco das leis que materializam o postulado do concurso público como meio de acesso aos cargos público.
Destarte, verifica-se a ausência, in casu, de um lastro mínimo a indicar a prática do injusto típico descrito no Decreto-lei n.º 201/67, o que não deixa outra alternativa ao dominus litis que não reconhecer a inviabilidade da promoção da persecutio criminis in iudicium.
Assim, no que concerne à opinio delicti, atribuição privativa do Parquet, por se cuidar de crime de ação penal pública incondicionada (art. 129, inciso I, da Constituição da República), a conclusão inarredável é pelo arquivamento do feito, sem prejuízo de futuras providências, desde que configurada a hipótese prevista no art. 18 do Código de Processo Penal ("Art. 18 - Depois de ordenado o arquivamento do inquérito pela autoridade judiciária, por falta de base para a denúncia, a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia.").
A esta altura, revela-se oportuno colacionar o seguinte aresto dessa Excelsa
Corte:
"(...) A competência originária do Supremo Tribunal Federal e indicativa da atividade via plenário, o que atrai a atuação do Procurador-Geral da República. Daí não se poder cogitar, no caso de promoção deste no sentido do arquivamento, de remessa a órgão para que apresente denúncia, designe outrem para fazê-lo ou insista na colocação inicial. (...)
A este cabe a última palavra sobre a viabilidade, ou não, da ação penal pública, sendo insuplantável, aí sim, o pronunciamento negativo a respeito."
(HC n.º 70.029-CE - Rel. Min. MARCO AURÉLIO - J. 31.03.1993 –DJ 13.08.1993 - p. 15.676 - Sem ênfase no original)
Ante o exposto, requeiro, com fundamento no art. 3.º, inciso I, da Lei n.º 8.038/90, o arquivamento do presente inquérito, uma vez que não vislumbro, in casu, justa causa a amparar eventual persecutio criminis em desfavor do Secretário Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social TARSO FERNANDO HERZ GENRO."
Acolho o pronunciamento do Ministério Público e determino o arquivamento do inquérito.

Brasília, 7 de abril de 2003.
Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE - Relator
fim do documento

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