sábado, 5 de novembro de 2016

INAPLICABILIDADE DE MULTA INCIDENTE SOBRE DÉBITOS PREVIDENCIÁRIOS DE MUNICÍPIOS



Nildo Lima Santos. Consultor em Administração Pública





Excertos de peça de recurso junto ao INSS em razão da imputação de supostos débitos previdenciários junto a ente municipal, elaborada por técnicos em conjunto com o consultor Nildo Lima Santos. Parte que se trata da aplicação da multa ao ente público municipal pela referida autarquia da União.


            A multa decorre, sempre, do poder de polícia administrativa exercida pelas pessoas de direito público.  Acontece que o Município goza de autonomia política, administrativa e financeira estando, nesse sentido, no mesmo patamar e independência que a União e os Estados. Inconcebível, assim, possa o Município sujeitar-se a aplicação de multas pela União e Estados. Muito menos pelas Autarquias, como é o caso do INSS.


         A questão foi bem analisada pelo eminente jurista TOSHIO MUKAI ao responder consulta formulada nesse sentido:

“A resposta ao quesito impõe que examinemos os traços principais do poder de polícia.

Para tal recorremos aos ensinamentos do saudoso Mestre Hely Lopes Meirelles:

“Poder de polícia é a faculdade de que dispõe a administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos individuais da coletividade ou do próprio Estado.

Em linguagem menos técnica, podemos dizer que o poder de polícia é o mecanismo de frenagem de que dispõe a Administração Pública para combater abusos do direito individual. Por esse mecanismo, que faz parte de toda a Administração, o Estado detém a atividade dos particulares que se revelar contrária, nociva ou inconveniente ao bem-estar social, ao desenvolvimento e à segurança nacional.” (In Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 19a ed., p. 115) (grifamos).

A sábia lição do Mestre Hely Lopes Meirelles nos conduz à importante conclusão: o poder de polícia será exercido sobre os particulares e, como veremos adiante, em decorrência da supremacia da Administração:

“a razão do poder de polícia é o interesse social e o seu fundamento está na supremacia geral que o Estado exerce em seu território sobre todas as pessoas, bens e atividades, supremacia que se revela nos mandamentos constitucionais e nas normas de ordem pública, que a cada passo opõem condicionamentos e restrições individuais em favor da coletividade, incumbindo ao Poder Público o seu policiamento.” (Hely Lopes Meirelles, in ob. Cit., 116) (Grifos nosso).

Verificamos o conceito e os fundamentos do poder de polícia, analisemos as preciosas considerações doutrinárias a respeito da possibilidade, ou não, da aplicação de multa entre pessoas de direito público.

Celso Antônio Bandeira de Mello, em precioso artigo, cujo tema é a impossibilidade de o INSS multar Municípios, tece considerações indispensáveis à solução da questão posta.

Inicia seu artigo conceituando a multa, no campo do Direito Público.

“Multa, no campo do Direito Público, é sanção de ordem pecuniária, cabível quando prevista em lei, imposta pelo poder público aos que descumprem deveres para com ele. Seu fundamento, obviamente, é o imperium do Estado, é a supremacia, sobre os que lhe estão sujeitos, assim como seu pressuposto é a inadimplência de um dever.” (RDP 11/298) (grifos do autor).

Prossegue, nas suas bem traçadas palavras, dedicando-se à supremacia do Estado:

“A polícia administrativa, o direito do expropriatório, a constituição de serões servem de exemplo da supremacia geral. O Estado exercita tais poderes, sobre pessoas e bens, estribado, apenas em sua posição altaneira, de autoridade guardiã do interesse público (...). Do exposto, segue-se que só pode impor multa quem desfruta de superioridade sobre outrem e só pode sofrê-la quem padeça de inferioridade em relação ao impositor dela.

Inexiste um desnivelamento de planos, revelador da supremacia jurídica de uma das partes, é despropositado cogitar de multa.

Daí ser rematado dislate, data vênia, admitir-se a hipótese de que uma pessoa meramente administrativa possa onerar com multas uma entidade política, de dignidade constitucional como é o Município (...). Este é o motivo pelo qual o INSS – simples autarquia – não pode multar municípios (...). Como, pois, imaginar possa um município estar colocado em situação de inferioridade, sujeito a um imperium de que a multa é expressão? (destaque do consultor)

Como supô-lo alcançável diante de uma simples entidade autárquica como o INSS?

Finaliza, o eminente Administrativista, de maneira jocosa e taxativa:

“No dia em que o motorista particular multar a autoridade de trânsito, no em que o cidadão tributar o Estado, em que o Município decretar intervenção municipal no Estado e este, intervenção estadual na União, talvez se possa cogitar de multa do Instituto Nacional da Seguridade Social sobre o município.” (destaque do consultor)

Como diria o próprio Prof. Celso Antônio Bandeira de Mello, o conteúdo deste artigo “calha à viveleta”. Não abandonamos, todavia, as considerações de outros autores sobre o tema.

O Prof. Geraldo Ataliba, indagado a este mesmo respeito no XII curso de Direito Municipal, realizado em Itanhaém, respondeu enfaticamente asseverando que:

“A multa é sempre uma punição. As entidades públicas não se punir umas às outras e, por isso, não podem nenhuma pessoa pública, seja ela autárquica, seja pessoa política, pagar multa a outra pública.” (RDP 21/283).

A Consultoria-Geral da República, parecer de lavra do Dr. Aroaldo Mesquita da Costa, sob Cobrança de multas e mora entre pessoas de Direito Público – Inviabilidade, cita decisão unânime da Egrégia Segunda Turma do Tribunal Federal de Recursos, em julgamento da A Civil n°. 14.168, de São Paulo:

“As autarquias, órgãos delegados da União, falece autoridade para exercer poder de polícia administrativa, impondo multas a outras entidades de direito público.” (RDP 5/175) (destaque nosso).

    
Conveniente se faz extrair deste mesmo parecer o erudito voto do eminente Min. Oscar Saraiva, proferido na supramencionada apelação:

“... na hierarquia dos privilégios, o da União prefere ao de suas autarquias, e seria inteiramente descabido que uma autarquia, órgão delegado da União, tivesse poderes disciplinares para impor multas a outras pessoas de direito público, o que é manifestação do poder de polícia administrativa.” (RDP 5/175).

Cabe-nos, por derradeiro, trazer a lume trecho elucidativo do Acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo em Ap. Civ. n.° 191.648-2/4, da Comarca de Itanhaém:

“Assim sendo, a aplicação de sanção administrativa por um ente público de direito público a outro de direito público constitui-se em intervenção não prevista na Constituição, por um ente de direito público na esfera de atribuições administrativas de outro ente de direito público, cerceando a autonomia administrativa estabelecida pela constituição para outro ente de direito público interno.” (destaque do consultor)

No corpo desse acórdão é citado ainda parecer da lavra do Ex-Consultor-Geral da República, Luiz Rafael Mayer, que conclui: “Não cabe imposição de multa entre pessoas jurídica de direito público, por inexistência de poder de polícia em tais casos,  no qual se faz menção a parecer no mesmo sentido emitido pelo Jurisconsulto Adroaldo Mesquita da Costa, bem como a um voto do Ministro Oscar Saraiva, no TRF, que teria concluído que “seria inteiramente descabido que uma autarquia, um órgão delegado da União, tivesse poderes disciplinares para impor multa a outras pessoas de direito público, o que é manifestação de poder de polícia-administrativa.” (In RDA 119/39f3-398). (destaque do consultor)

Com efeito, ante as considerações de ordem doutrinária e jurisprudencial trazidas à exaustão, coloca-se de maneira incontestável a conclusão pela impossibilidade absoluta de imposição de multa entre pessoas de direito público, posto que a supremacia entre o aplicador da multa e aquele que irá sofrê-la é requisito essencial para a sua legalidade. E assim o é, pois a imposição de multa nada é do que o exercício do poder de polícia administrativa, que, conforme colocou-se inicialmente, tem como fundamento a supremacia do administrador sobre o administrado. (destaque do consultor)

In casu, podemos afirmar com segurança que a aplicação de multa pelo INSS ao Prefeito de Itanhaém reveste-se não de legalidade, mas sim de inconstitucionalidade, posto que a inexistência de supremacia entre o INSS e o Município importa na desconsideração da autonomia política do Município de Itanhaém, pelo INSS, de maneira fragrante. (destaque do consultor)

Diante de todo o exposto, em resposta objetiva ao quesito, asseveramos que é inadmissível a imposição de multa, e conseqüentemente mora, entre pessoas de direito público, dada a inexistência de poder de polícia entre os mesmos.”

Fonte: Boletim de Direito Municipal n.° 07, julho 1994, páginas 067 a 612.


          Também, no mesmo diapasão, é a tese da jurisprudência registrada nos nossos tribunais, os quais seguem a mesma tese que, ora se expõe, nesta peça. A exemplo:

“TRF
DJU, Seção II, 25/11/1992, pág. 39.466 – col. 01
Agrava de Instrumento n.° 90.04.054006-5-RS
Agravante: Instituto de Administração Financeiro da Previdência e Assistência Social –IAPAS.
Agravado: Município de Veranópolis – RS
Interesse: Academia Veranense de Assistência a Educação e Cultura.
Relatora: Juíza Luzia Dias Cassales.

AGRAVO DE INSTRUMENTO. COBRANÇA DE MULTAS. PREFEITURAS MUNICIPAIS.

1. NÃO CABE A COBRANÇA DE MULTAS INCIDENTES SOBRE DÉBITOS PREVIDÊCIÁRIOS DAS PREFEITURAS MUNICIPAIS.
2. AGRAVO DE INSTRUMENTO IMPROVIDO

Acórdão 

Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas, decide a 2a Turma do Tribunal Regional Federal da 4a Região, por unanimidade, negar provimento ao agravo de instrumento, nos termos do relatório de notas taquigrafadas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

Porto Alegre, 8 de outubro de 1992 (data do julgamento)

Fonte: BDM – Boletim de direito Municipal – Julho/94, pág. 390.


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